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Segunda-feira, 12/11/2001
singelo concerto em sol menor
Suzi Hong

Eu dormia quando bati meu carro no poste da garagem.

Eu chovia quando o ônibus intermunicipal amassou toda a lateral direita do meu carro, arrancando-lhe o espelho retrovisor e me arrancando acessos de raiva histérica e muitos palavrões.

Eu bebia na casa de amigos quando bateram no pára-choques traseiro do meu carro estacionado na rua.

O pobre coitado, antes de começar a criar ferrugem, mofo, gnomos e alienígenas, está agora no conserto desde segunda-feira. Não sei quando o verei ainda, novo, piscando os faróis para mim.

Estou a pé e transporte público no meio da multidão de São Paulo. Anônima e desajeitada na hora de me equilibrar no metrô lotado e epiléptico, parecendo uma senhora gorda e esclerosada na hora de descer no ponto de ônibus, com meus reais 45 kg e surreais 26 anos.

Sinto-me perdida porque não sei mais os itinerários de quase todas as principais linhas de ônibus como sabia quando era estagiária de Direito; não sei mais dormir no metrô em pé, como quando demorava quase uma hora e meia para chegar às sete da manhã no colégio onde estudava. Esbarro nas pessoas, tropeço em buracos do chão. Só tenho o samba no pé do acelerador, freio e da embreagem. Só toco Debussy com as mãos no volante e os dedos postos sobre a marcha.

Sou uma passista patética, uma pianista decadente nas ruas de São Paulo. Há de existir um regente para guiar meus passos, batuques e cadências.

Não estou chateada com minha falta de jeito. Não me importo se minha esvoaçada mente sem direção e meus itinerários todos toscos são apenas conseqüências merecidas da vida pequeno-burguesa percorrida dentro de um bólido vermelho, cuja falta não sinto tanto assim.

Importa-me agora que existem pessoas que ainda falam boa tarde ao motorista de ônibus. Pessoas que me ajudam a levantar do chão depois de tropeçar no buraco. Homens cansados a caminho do trabalho que se oferecem a segurar minha pasta cheia de papéis. Mulheres despenteadas que perguntam onde comprei minha bolsa e aproveitam para conversar sobre o tempo, o antraz, o marido (ah, os homens...) e sorriem num consolo dizendo que sou jovem e tenho a vida inteira pela frente, para ser sofrida, amada, sonhada. “Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz? E amanhã se esse chão que eu beijei for meu leito e perdão, vou saber que valeu delirar e morrer de paixão. E assim, seja lá como for vai ter fim a infinita aflição e o mundo vai ver uma flor brotar do impossível chão”.

São rostos desconhecidos, cansados, alguns alienados, mas todos guardam uma essência em comum que não sei se tenho. São, sim, “flores que brotam do impossível chão”, inesperadas, abençoadas. Será que essas pessoas também chovem ouvindo o barulho da cidade lá fora que procuro tanto negar e lavar de mim? Não... acho que agradecem o orvalho que lhes cobrem todas as manhãs.

O “sonho impossível” tem beijo no fim da estrada. Meu carro tem conserto. Também o mundo, ainda que inóspito. Basta afinar alguns pianos, trocar as cordas de certos violinos e as baquetas quebradas por novas feitas de cedro, saudar o maestro com o olhar compenetrado e a alma pronta para ser devota ao concerto em Sol menor que a poucos iluminam, ainda que o auditório esteja repleto de cadeiras vazias.

Eu... bom, eu. Acho que não tenho conserto, porque rebelde que sou, quero me abster de um concerto triste que me tiram lágrimas abortadas. Quando o teatro estiver com a lotação esgotada, então, por favor, guardem um assento para que eu possa apreciar um mundo regido com maestria, paixão e notas acolhedoras, aquelas únicas e raras capazes de nos levar, em ônibus, metrôs e caminhadas, à tal essência comum às pessoas que brotam do impossível.

Para ir além

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Suzi Hong
São Paulo, 12/11/2001

 

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