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Quarta-feira, 27/5/2009
Dez Coisas
Guilherme Pontes Coelho

São dez coisas para seguir, gostar ou apreciar, entre pessoas, ideias e atividades. Seriam muito mais, claro. Mas a escolha delas foi baseada nos tempos frenéticos de internet. Tempos nos quais tudo é muito explícito, e muito do que a gente vê é mediano; nos quais virtualmente tudo é confuso; e a gente precisa de sinalizações para seguir em segurança. Estas escolhas, todas elas, de alguma maneira lidam com nosso Zeitgeist, seja pelo confronto, seja pela conexão. E elas vão aqui aleatoriamente, na sequência que o inconsciente ditou, enquanto eu as rabiscava no papel.

Cartola
Angenor de Oliveira. O tipo de gênio que não existe mais na nossa música. O que é mais impressionante em Cartola é que tudo é de uma simplicidade constrangedora.

A canção "Autonomia", por exemplo, tem 2min48 e já é o suficiente para abalar qualquer um. Simples, curta, sincera. Tudo o que ele canta, mesmo que não seja dele, como a fantástica "Preciso me encontrar", é cantado de um jeito que cada pessoa que o ouça é capaz de acreditar que ele está lhe contando uma história, só pra você, sobre o que viveu ― e o narra com aquela sinceridade de quem sabe do que está falando. Ele viveu o suficiente pra ter certeza do que diz, e não impõe nada a você, não quer o obrigar ao aprendizado, porque sabe que cada um faz seu próprio caminho.

A música dele tem muito espírito. Não só a dele, eu sei. Nelson Cavaquinho também é genial e Clementina de Jesus é apaixonante. Mas há uma assertividade gentil em Cartola que hipnotiza. Até na conquista Cartola é discreto, silencioso e simples. A verdade do amor não precisa de muito teatro. A canção "Nós dois" vale mais que todos os tratados já escritos sobre o amor.

Obs.: Recomendo o ensaio de Nuno Ramos na revista serrote n.º 1. Ótimos paralelos entre Nelson Cavaquinho e Cartola. Texto muito bem escrito.

Bach
É o maior clichê do universo falar de Bach. Dizer que ele é genial, que a música dele é divina, que isso, que aquilo. Eu sempre sinto vergonha alheia quando alguém fala de música clássica citando Bach, Mozart e Beethoven (no caso deste, geralmente confundindo a Nona com a Quinta), porque todos nós nos achamos experts na coisa etc. e tal. Mesmo assim, mesmo com esse discurso arrogante e a vergonha alheia, eu tenho de reconhecer que basta ouvir, por exemplo, o Concerto para Violino e Oboé para se sentir autoridade em Bach, e em música clássica. Quando a gente ouve, passa a fazer parte do nosso universo musical instantaneamente. É belo.

O mais espantoso em Bach é ele ter feito uma obra tão monumental sem ter em mente ser cultuado, como virou prática depois e hoje é praticamente regra, mesmo que a obra não valha nada. Nós somos todos Pedros Cassavas. Queremos ser cineastas geniais, escritores geniais, pintores geniais... mas não queremos escrever, nem filmar, nem pintar nada genial. Queremos definir a obra pelo ego, não o inverso. Mas se a obra é genial, acredite, você não se preocuparia com o ego. Como Bach, por exemplo. Pode ser desleal usar este argumento citando Bach, eu sei. Citar Cartola seria tão desleal quanto. Enfim, ouça Bach.

Obs.: Se quiser conhecer Bach não só ouvindo, recomendo 1) a biografia dele escrita pelo Philipp Spitta. Não existe versão em português, que eu saiba. Indico a tradução em inglês da Dover, em três volumes; e 2) 48 variações sobre Bach, de Franz Rueb. É uma abordagem mais concisa e até corrige algumas coisas que o Spitta escreveu. Sobre a vida religiosa de Bach, por exemplo.

Salmão
Coma salmão. Muito e sempre.

Futebol feminino
Uma vez disse que "futebol é esporte de mulher" e me tomaram por preconceituoso. Mas não é isso. Levando em conta o lugar-comum de que fazem parte do arquétipo da mulher a intuição, a dissimulação, a atração e a flexibilidade (o "jeitinho"), como não enxergar tudo isso no futebol?

Futebol é muito mais a cara de quem mora abaixo da linha do Equador, porque é pura dança. Aquelas coisas que o Denílson fazia quando estava no auge era passos de dança, não esporte. Era fenomenal, claro. Porém, sempre associo ao futebol a dança, de maneira que é impossível separar um do outro. E, por isso, sempre achei o futebol um esporte muito mais feminino que masculino.

Os jogos da seleção do Dunga não me interessam muito, e aposto que nem a você. Aqueles caras não jogam com a paixão da Era Romântica do futebol, quando ainda não havíamos ganhado Copas do Mundo, nem jogam com o profissionalismo que qualquer trabalho exige. Mas os jogos da seleção feminina de futebol são outra história. Aquelas garotas honram o esporte. Por causa das mulheres é que o futebol brasileiro é arte. Ver Cris e Marta jogando é um sonho.

Obs.: É uma vergonha a maioria delas ganhar tão pouco financeiramente.

Rugby
Uma das coisas mais certas que Oscar Wilde já escreveu: "O rugby é um jogo para bárbaros jogado por cavalheiros. Futebol é um jogo para cavalheiros jogado por bárbaros". O melhor esporte coletivo que existe. Ainda somos perebas nele. Mas é só questão de tempo a gente conseguir se classificar para Copa do Mundo de Rugby, talvez muito tempo... O último jogo da nossa seleção, pelas eliminatórias da Copa, foi um vexame. Okay. Somos inexperientes nisso. Apenas. Não foi preguiça ou desdém (como vemos nos boleiros canarinhos). Quem joga rugby no Brasil joga porque gosta, e muito.

Ao contrário do que leigos e neófitos imaginam ao ver uma partida de rugby, não é um esporte violento. É muito cavalheiresco, por sinal. A autoridade do árbitro é respeitada, porque só os capitães dos times podem se dirigir a ele, e nenhum jogador é advertido na ausência do seu capitão. Quando me perguntam "Como é esse jogo?" e eu começo explicando que a bola só pode ser passada pra trás, eu sou capaz de ver o nó mental na cabeça da pessoa. "Mas como assim?". É isso. Cada metro deve ser conquistado beligerantemente ― e isso não é feito sozinho.

A tensão entre brilho individual e eficiência coletiva é muito equilibrada nesse esporte. Johnny Wilkinson fez muito pela Inglaterra na Copa de 2003, aquele drop goal nos últimos instantes de jogo foi lindo, mas ninguém diz que ele ganhou a Copa sozinho.

É um esporte em que nada é de graça, todo mundo depende de todo mundo e, embora haja espaço para o improviso, demanda estratégias quase enxadrísticas. Pratique rugby.

Obs.: A bola só pode ser passada para frente por chutes; os passes com as mãos são para trás ou, no máximo, lateralmente, de acordo com a posição de quem passa a bola.

Revista piauí
Uma revista mensal de textos caudalosos e bem escritos é tudo o que nosso jornalismo cultural precisava. Ela não é mais novidade, mas minha geração esperou tanto por isso que me sinto obrigado a, sempre que posso, manifestar, digamos, contentamento.

Michal Mann
É impressionante como Michael Mann mantém a qualidade nos filmes que faz. De todos eles, o único aquém do esperado pode ter sido O Último dos Moicanos. Acho que por ter sido o único filme não urbano de sua filmografia. Em 1995 começa uma sequência invejável: Fogo contra fogo, O Informante, Ali, Collateral, Miami Vice. Em Fogo... , o equilíbrio entre os dois núcleos narrativos, um centrado em Vincent Hannah (Al Pacino), outro, em Neil McCauley (Robert DeNiro), é tão bom que, de lá pra cá, acho que coisa semelhante só foi alcançada recentemente, com O Gângster de Ridley Scott.

Mann não faz tantos filmes quanto Martin Scorsese, por exemplo. O que é bom, assim não produz nada descartável.

Ele tem uma preocupação com o espaço (território) quase existencial. Em Mann, os personagens se veem numa situação limite que precisam resolver ou da qual devem se livrar o mais rápido possível. Raramente conhecemos a biografia deles, só os vemos agindo com um fim específico em mente, geralmente ditado pela profissão que exercem. A profissão, que é a maneira como o indivíduo adquire identidade e se afirma na sociedade, é sempre um tema relevante em Mann. O lugar ao qual os personagens pertencem e a maneira como, pela conduta profissional, eles interagem com esse espaço: esse é todo o conflito de Miami Vice, seu filme esteticamente mais virtuoso, até agora.

Obs.: Veja isto.

Michel Leiris
Na lista dos livros que mais nos influenciaram, alguns são bem previsíveis, outros insólitos, e outros inexplicáveis. Sempre terei um lugar guardado para o romance Trevayne, de Robert Ludlum, à época em que li assinado por Jonathan Ryder, um dos seus pen-names. Foi o único livro do Ludlum que li, mas foi meu primeiro romance. Não tem como esquecer. Inesquecível também é Até o fim do mundo, de David Yallop, o primeiro livro comprado com meu próprio dinheirinho. Memórias Póstumas de Brás Cubas foi uma grande revolução. Na época eu senti que havia evoluído intelectualmente, embora, aos 15 anos, o único capítulo do livro que grude na memória seja o VII, "O Delírio". E só.

Aquela sensação de estremecimento, o choque que a leitura causa só veio me acontecer muito tempo depois, aos 22 anos, com Espelho da tauromaquia, de Michel Leiris. Até então ler era um vício sem muito brilho. Mas esse livro foi o primeiro que li em que paixão, raciocínio, entrega, sensualidade, poesia, força e método andavam juntos. O hibridismo intelectual de Leiris foi uma das melhores coisas que conheci. Sobre o quesito forma, é possível ver um certo hibridismo, talvez, n'A escultura de si, do Michel Onfray... mas não, Leiris é incomparável.

A idade viril, também do Leiris, é um esboço autobiográfico poderosíssimo. É intelectualmente rico e honesto, emocionalmente maduro, literariamente sublime. Comece por ele.

Duelo Freud-Jung
Nem Jung, nem Freud, mas a tensão entre um e outro é altamente recomendável para quem quer ficar por dentro de visões de mundo relevantes, mas não quer se comprometer. Quando você tiver tempo, aconselho a diversão nerd de pegar os Fundamentos de Psicologia Analítica, de Jung, e Esboço de Psicanálise, de Freud, e ler capítulos alternados de um e outro. É um jogo interessante. Não é preciso dizer que essa brincadeira só vale com estes dois livros, os introdutórios.

Discípulos de um e outro continuaram a obra de seus mestres e por vezes a contestaram. Embora Melanie Klein e, mais que ela, Wilhelm Reich tenham feito contribuições próprias à psicanálise, ambos fazem parte da mesma família Freud. O mesmo podemos dizer de James Hillman e, numa ótica academicamente mais flexível, Joseph Campbell em relação à família Jung.

Para usar um termo adorado em bancas de doutorado, ambas Weltanschauungen continuam vivas por aí. Apreciar curiosa e ceticamente a ambas é um divertimento erudito que lhe recomendo.

Obs.: Já levei a sério ambas as visões, alternadamente. Hoje, troquei a dúvida pela ironia e pelo prazer de tentar entender uma e outra. Para uma visão menos idólatra de Jung, recomendo um dos livros mais bem escritos que conheço, O Culto de Jung, de Richard Noll.

Samuel Rawet
Só havia três contistas na minha biblioteca: Jorge Luis Borges, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Era meio chato ler contos até conhecer Rawet. Ele mudou tudo.

Já ouvi muitas queixas contra o mercado editorial brasileiro, mas graças à maneira como ele é hoje, competitivo, é que podemos conhecer a obra de Samuel Rawet, um errante judeu antissemita, nascido na Polônia, engenheiro calculista na construção de Brasília e, no final da vida, solitário, publisher de seus próprios livros artesanais, caçador de judeus (Rawet, já mentalmente comprometido, andava pela capital federal carregando uma gaiola fedida, e quando lhe perguntavam pra que ela servia, respondia: "Pra prender judeu!"). A Civilização Brasileira, aos cuidados de André Seffrin, publicou dois volumes seus, um de contos e novelas, outro de ensaios que são, como dizem, must-have books.

Um judeu errante, estranho a si mesmo, literariamente destemido, como provam seus contos. Um escritor espetacular.

Obs.: Nós, leitores, não fomos só beneficiados com Rawet, mas com Dyonélio Machado, Lucio Cardoso, Pedro Nava e outros recentemente republicados. Mal vejo a hora em que alguma editora criará vergonha na cara e republicará Otávio de Faria, completo.

Guilherme Pontes Coelho
Brasília, 27/5/2009

 

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