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Segunda-feira, 25/5/2009
A polêmica dos quadrinhos
Gian Danton

Recentemente a história em quadrinhos 10 na área, um na banheira e ninguém no gol (Via Lettera, 2002, 112 págs.) foi alvo de grande polêmica envolvendo a compra da mesma para bibliotecas públicas do Estado de São Paulo. A escolha da obra revela, por si só, um preconceito: 10 na área... foi produzida para um público adulto, mas foi comprada pelo Governo do Estado de São Paulo para ser lido por crianças de oito anos. Quem escolheu a obra partiu da ideia equivocada de que toda HQ é infantil.

O episódio lamentável tomou proporções ainda maiores quando foi divulgado na mídia. O que se viu foi um show de desinformação. Falou-se que se tratava de uma apostila, que os autores eram depravados sexuais preocupados em perverter crianças... a maioria dos jornalistas não se deu ao trabalho de pesquisar do que se tratava. Se o fizessem, descobririam que 10 na área... é uma coletânea de quadrinhos sobre futebol, publicada em 2002, na época da Copa, e destinada ao público adulto. Não foi feita como quadrinho didático ou mesmo paradidático.

As próprias autoridades não se preocuparam em esclarecer a situação, talvez porque fosse mais fácil jogar a culpa sobre os quadrinistas do que em assumir os erros de um técnico na área de educação que não conhece quadrinhos.

Em entrevista ao jornal SPTV, o governador José Serra falou sobre o caso. A jornalista não perguntou a opinião do governador sobre a qualidade do material nem pediu uma análise estética, mas o governador fez questão de dizer "Achei a obra um horror... tudo de muito mau gosto... o desenho, tudo". Mais à frente, na mesma entrevista, o governador foi indagado sobre o livro de geografia distribuído pelo Governo do Estado, em que apareciam dois "Paraguais". "Esse é um caso muito menos grave", assegurou o governador. Muito menos grave? Como? No caso de 10 na área..., a obra é boa, fato demonstrado pelos prêmios recebidos por ela e seus autores (entre eles, os irmãos Bá, ganhadores do prêmio Eisner, o mais importante dos quadrinhos), só foi mal-escolhida. No caso do livro de geografia, a obra tem um erro gravíssimo, uma distorção da realidade, que compromete todo o conteúdo.

Estava dada a dica e a imprensa sensacionalista caiu em cima. Datena sugeriu que 10 na área... era uma espécie de cartilha de libertinagem. Ratinho soltou palavrões. Até mesmo a rede Globo (em reportagem do SPTV) saiu-se com essa inusitada chamada: "As histórias são em quadrinhos, mas o conteúdo não tem nada de infantil", como se o fato de ser quadrinhos obrigasse o material a ser infantil.

Os autores, que nem mesmo ganharam dinheiro com a publicação, tiveram que vir a público se explicar. "Compraram livros sem ler para estimular a leitura dos jovens!", afirmou Spacca. "Quando eu fiz o livro, era destinado a outro público, de mais idade (...) Quem comprou não avaliou isso. O problema todo foi a falha da seleção em si.", disse Lélis. "Há claramente aqui um engano. O álbum foi concebido e produzido para um público adulto às vésperas da Copa de 2002", afirmou Orlando, organizador da coletânea.

"Esse escândalo por conta do livro Dez na área, um na banheira e ninguém no gol é um escândalo mesmo, por várias razões. Primeiro, porque a barbeiragem é do governo. Esse livro não foi escrito nem ilustrado para crianças de nove anos. Quem botou o livro na mão da molecada que se responsabilize. Não foram os editores, organizadores ou autores ― um time de primeiríssima que orgulharia qualquer indústria de HQ do planeta", escreveu André Forastieri, em seu blog.

A grande imprensa, em especial a sensacionalista, que vive de desgraças, palavrões e bizarrices, ignorou completamente isso e preferiu botar seus holofotes sobre os quadrinhos.

Se a obra fosse literária, provavelmente a reação seria muito diferente.

Vamos imaginar uma outra situação, igualmente bizarra: que alguém desavisado resolvesse distribuir a obra Saraminda, de José Sarney, para crianças de oito anos. Ao se deparar com trechos eróticos ("Eu soube o que era amor. E eu fui implorando para ela se entregar, e ela era uma cobra sucuri que se enrolava em mim e fugia sem fugir, assim junta e sussurando. (...) Ali estavam os bicos dos seios que eu apenas tinha entrevisto, amarelos como ouro bruto, tirado da terra, mas do brilho trabalhado por mãos de ourives, artista do bonito. As pontas eram grandes, altas, duras, roliças, faiscavam como tição...") qual jornalista ou político pensaria em culpar o autor, ou dizer que a obra é um horror, de muito mau gosto? Nenhum, provavelmente, ou pelo menos nenhum em seu juízo perfeito. Seria claro que o erro não é da obra, mas da escolha para estudantes de oito anos.

O que provocou tanta polêmica não foram os palavrões (até pudicos, comparados com os que são gritados por Ratinho todo dia, para uma audiência que inclui crianças). Não foram as cenas eróticas. Aliás, essas se resumem a um quadro no qual aparece uma mulher de lingerie, tão sensual quanto qualquer dançarina do Faustão ou Gugu e muito menos explícita do que o mundo cão de Datena.

O que provocou polêmica foi o fato de ser quadrinhos.

Imprensa e José Serra cometeram o mesmo erro da pessoa que teve a infeliz ideia de distribuir esse álbum para estudantes de oito anos: achar que, se é quadrinhos, é para crianças.

Para ir além





Gian Danton
Macapá, 25/5/2009

 

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