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Quarta-feira, 10/6/2009
Meu assassino
Guilherme Pontes Coelho

Eva Katchadourian é uma editora de guias de viagem, norte-americana descendente de armênios e de laços familiares rarefeitos. Ela mesma viaja para todos os países sobre os quais sua editora, A Wing & a Prayer, publica os guias, da Escandinávia ao Oriente Próximo, da América Central à África Setentrional, e não importa se onde ela se hospedará seja ou um cinco estrelas caribenho para turistas endinheirados ou um albergue aos pedaços que amendrontaria qualquer beduíno marroquino. Assim resumida, você pensaria que ela é uma mulher sem medos.

Ela precisava de imagens do vale do Ródano para um dos seus guias, mas estava em solo norte-americano. Indicaram a ela um profissional da área, Franklin Plaskett, diretor de locação, tarimbado em achar cenários naturais para filmes e campanhas publicitárias. Ela achou muito inconveniente contratá-lo para ele ir à França, gastar com hospedagem e adjacências logísticas. Mas ele foi impertinente e afirmativo: não seja ridícula. Ele achou um vale do Ródano na Pensilvânia.

Assim começou o flerte que daria casamento. Ela, franzina e de feições "étnicas", cresceu numa família frágil, descende de um povo historicamente resistente mas sofrido e que amarga um passado recente de muito sangue; uma viajante, uma sensual, fã do "exótico", desde comidas a pessoas, mulher de cabeça aberta e simpatizante de mistérios; uma estadunidense estranha no próprio país; uma democrata, leitora da New Yorker e de E. M. Forster, que não se privava de demonstrar repulsa ao New York Times e ao conservadorismo republicano. Esta mulher se casará com um carnívoro, fã de Bruce Springsteen, assinante da National Geographic, inseparável de seu boné do New York Yankees; um consumidor voraz de hot dogs e entusiasta de churrascos no Quatro de Julho; leitor de ficção científica e policiais do tipo Tom Clancy; um homem alto e volumoso como um wrestler, e bom de cama; loiro e queimado de sol de tanto andar por aí à procura de Ródanos; admirador de Charlie Parker, mas que gosta mesmo do bom rock branco americano: Elvis Presley e Beach Boys.

No dia 11 de abril de 1983, aos 37 anos de idade, Eva Katchadourian dará luz a Kevin, seu primeiro filho, ainda insegura quanto ao papel de mãe que representará daí por diante ― ao contrário do seu marido Franklin, tranquilamente à vontade como pai. Embora não se pareçam, não guardem semelhanças culturais e familiares e nem sobre como educar uma criança Eva e Franklin estejam em sintonia, eles se casaram por amor e maduros o suficiente para se reconhecerem e se aceitarem como oriundos de mundos distintos. O primeiro filho, contudo, poria em andamento o lento processo de desgaste conjugal.

A própria gravidez não havia sido um período calmo. Algumas mães, como Eva, aprendem que a maternidade exige aprendizado; e aprendem que o período em que carregam um ser humano na barriga pode não ser aquele estado de graça tão falado, mas uma anulação de identidade em nome de uma ervilha, que lentamente se tornará uma melancia. No caso de Eva, o sentimento de coadjuvante na sua própria vida fora irritantemente acentuado pela maneira equivocada como o vigilante Franklin e a maioria dos homens concebem uma buchuda: quebrável. Pelo breve retrato que você teve de Eva, é fácil imaginar o quão incômoda fora a gestação.

Então nasce Kevin. Filho de um pragmático, sólido e generoso pai, que, além de tudo, tinha de sobra o pecadilho dos autoconfiantes, a boa-fé, e de uma crítica, mutável e voluntariosa mãe. Este menino, quando adolescente, colocará à prova todos os limites de compreensão e tolerância dos pais, sobretudo da mãe. Não só isso: à prova também estará toda a capacidade de amar o próprio filho, pondo em xeque, assim, a incondicionalidade do amor materno.

Kevin Katchadourian ― KK ― será o assassino de familiares e colegas de escola numa quinta-feira que ficará conhecida como "o massacre de Gladstone". O filho de Eva matará uma dúzia de pessoas de forma hollywoodiana (sem dúvida, um extermínio originalíssimo). A obra de Kevin causaria inveja aos demais teen killers norte-americanos, até porque, ao contrário do corriqueiro, a chacina não terminou no covarde suicídio do autor. Ele foi além. Não culpou nada nem ninguém por seus atos. Fizera tudo com a cristalina consciência de matar.

Imagine que este seja seu filho. E agora? Esta pergunta é um dos Leitmotiven do romance Precisamos falar sobre o Kevin (Intrínseca, 2007, 464 págs., tradução de Beth Vieira e Vera Ribeiro), de Lionel Shriver.

E agora, que o ser humano que você pôs no mundo é um assassino frio e cruel; que as atitudes do seu filho pulverizaram de sua vida todas as possibilidades de ser feliz; que aquele menino que você achava que conhecia é, na verdade, um total estranho; e agora, você o ama? Mais: em que medida nós, os pais, somos responsáveis diretos por estas chacinas escolares? Ou elas são frutos de nossa (norte-americana) cultura armamentista e xenófoba contra a qual os pais não podem fazer nada? Aliás, é possível culpar assim a cultura em que vivemos como se não fizéssemos parte dela? Isso é possível? Parece uma maneira de se eximir da culpa... mas somos mesmo responsáveis por tudo que nosso filho faz? Que linha separa a vida do filho ― que é só dele ― da educação que lhe damos? Quando ele se desvia de tudo, absolutamente tudo o que ensinamos, cometendo uma chacina infame, você o amará?

Estes e outros questionamentos são continuamente levantados pela narradora Eva Katchadourian no romance de Shriver sem nunca parecerem maçantes ou repetitivos. Pouco mais de um ano depois da tragédia, com Kevin devidamente lacrado numa prisão para delinquentes, Eva, agora morando só, inicia uma correspondência com Franklin ― escreve cartas para entender o que aconteceu, para dar notícias de sua nova rotina, para recompor-se catarticamente, para deixar o marido a par de sentimentos sufocados pelo casamento. Por ser um romance epistolar, tudo é abordado de forma simples e intensa. Enfim, confessional.

(Lembro de Michel Leiris: "O que desconhecia é que na base de toda introspecção há o gosto de contemplar-se, e que no fundo de toda confissão há o desejo de ser absolvido.".)

O poder de reflexão moral de Shriver é impressionante. Não à toa fora comparada a George Eliot. Suas reflexões vão desde as mais íntimas de Eva Katchadourian às mais abrangentes, e neste ponto faz parte do time de Bellow, Roth e Updike, as sobre a cultura ocidental no que diz respeito a educação, maternidade, gênero, infância, sexo. Estas análises nunca parecem fora de contexto, aliás. Funcionam organicamente em todo o romance e, o que é mais espantoso, estão sempre ligadas à vida da própria Eva.

Ainda não importamos as chacinas escolares. Digo, não da maneira como são executadas lá na América do Norte. Nossas chacinas não têm os requintes cinematográficos de Columbine nem, muito menos, da fictícia Gladstone (a do Kevin), mas jovens são assassinados em salas de aula todos os dias nas escolas de subúrbio mais próximas ― ou menos distantes ― de você. Lá, nos EUA, matam porque "high school sucks", como dizem os próprios perpetrators; aqui, porque a família é ausente, porque faltam condições de crescimento humano, porque exclusão social e delinquência compõem o dilema de Tostines etc. etc.

Tento não relativizar os motivos que levam os atormentados adolescentes norte-americanos a matarem seus colegas a bala, porque cada um sofre o tanto que aguenta. Okay, sofra, mas transformar este sofrimento em sangrenta morte alheia faz qualquer um questionar se este ser humano merece compaixão. E se ele fosse seu filho?

Para ir além





Guilherme Pontes Coelho
Brasília, 10/6/2009

 

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