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Quarta-feira, 12/8/2009
Escrevendo
Rafael Fernandes

Criação
Acho que o processo da produção intelectual desperta curiosidade em todos nós. Sempre me interessei bastante pela criação musical. A construção a partir do nada, uma fagulha de ideia que surge quando se está tocando, ou num momento qualquer (num almoço ou no banho) ou a partir de um "conceito". A procura de um motivo musical, uma melodia, um riff. O modo como uma canção começa a estruturar: as escolhas, as construções das diversas partes, as transições, o encaixe da letra. E quando os pilares da música já estão quase prontos vem a parte dos arranjos: achar o andamento certo, os instrumentos que podem ser usados, as dinâmicas etc. Em seguida, as interpretações, gravações e finalização. A labuta da escrita tem algo disso ― e tenho tido interesse por ela também, por motivos óbvios. Da folha em branco, passando por algumas frases soltas, um parágrafo se formando, o estilo, a edição. E o ritmo de um texto ― que me parece um conceito bem mais difícil de trabalhar e de acertar do que na música.

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A produção intelectual, claro, depende do conhecimento. E isso vem tanto do estudo, quanto da experiência. É também fruto da invenção e da repetição. Como na música: um ótimo improviso esconde horas de estudos de harmonia, ritmo, frases e afins, para, no momento em que o músico precisar, ter os recursos necessários. A criação a partir de uma "epifania" não me convence. Essa "epifania" na verdade é resultado de trabalho anterior, da constante procura de soluções; do estudo e pensamento contínuos.

Organizando ideias
Li certa vez uma declaração de Woody Allen de que ele teria uma gaveta em que guarda pequenos pedaços de papel, com anotações diversas de ideias, gags, frases etc. Quando essa gaveta enche, ele considera ter a base de um filme e começa a organizar tudo. Não tenho uma gaveta assim, muito menos sou um Woody Allen, mas anotar sempre as pequenas ideias, mesmo as quase estúpidas, ajuda muito. Às vezes penso em temas para textos; aí, em geral, eles viram títulos e entram numa lista, que cresce continuamente. Se vão se tornar um texto completo já é outra história. Também tenho um hábito não muito prático de anotar no meu caderno, sem preocupação com ordem, sentenças ou pequenos parágrafos para incluir nos textos em que estou trabalhando ― umas dez linhas deste apareceram assim. O problema é que às vezes me esqueço disso. Recentemente cheguei às últimas páginas de um caderno e achei dois parágrafos de um texto que já publiquei, mas não lembrei de colocar.

Escrevendo
Eu, em geral, enfrento três problemas básicos ao escrever. O texto empaca no meio e tenho que me virar para "destravar". Ou fica gigante e a edição tem que ser ainda mais intensa e rigorosa. Ou, ainda, não sai de meia dúzia de frases avulsas e encalha para sempre. Ultimamente tenho achado a edição uma das partes mais interessantes, na busca por textos mais enxutos, só deixando as partes que considero as mais importantes, sem tantos excessos. Porém, não é lá uma tarefa fácil. Afinal, tudo parece ser imprescindível, e cortar frases, um sacrilégio. Mas aos poucos vou percebendo o quanto isso é bobagem e como as ideias fluem melhor quando são mais diretas, embora fique entre o "cortar mais" e "isso aqui é muito bom" ― raramente é.

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Prefiro escrever em silêncio, com foco. Até porque percebo que distrações externas (música, MSN, e-mail...) muitas vezes travam uma linha de raciocínio que estava fluindo, quase como um vinil riscado. Isso é um problema não só por perder o fio da meada, mas porque traz, como outra consequência, um balde de água fria naquela empolgação de ter achado um atalho. Por outro lado, não são poucas as vezes que escrever ouvindo música ajuda a levantar a bola e, por mais paradoxal que pareça, me dá energia quando estou cansado. Uma música mais pesada para aumentar a empolgação ou uma mais calma de fundo para relaxar. Ou ainda qualquer uma no fone de ouvido só para encobrir a dupla sertaneja tocando na festa junina na igreja da esquina.

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Para escrever, o que busco na procura da evolução é o que funciona para todo mundo: ler muito ― livros, revistas, sites, blogs e o Digestivo, claro. E escrever muito: textos, parágrafos, frases. Para treinar apenas ou para publicar no meu blog ― voltei recentemente com ele. Porque, além de ajudar no exercício da escrita, o hábito de blogar pode gerar pequenos textos que acabam sendo usados em outros maiores.

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Só recentemente comecei a reler meus textos mais antigos. Confesso que a sensação é um pouco como a de ouvir a própria voz numa gravação ou a de assistir ao vídeo daquela festa de aniversário de 1989. Não é exatamente vergonha, mas aquele sentimento de incômodo de olhar o que era e o que fiz com uma avaliação mais fria e distante. Quase como se fosse outra pessoa. Apesar disso, é um mal necessário, pois é um processo vital para a melhora na escrita, tanto no conteúdo quanto na forma.

Finalizando...
Acontece de, uma vez ou outra, eu desenvolver dois textos ao mesmo tempo. Isso costuma funcionar quando eles têm algum tipo de relação e quando ambos estão num estágio inicial, naquele momento em que as ideias ainda estão se formatando. A busca por soluções para um pode gerar uma fagulha de inspiração para o outro. Sim, é confuso. Por isso esse processo tende a não funcionar mais na etapa de finalização, que requer muita atenção. Aí, essa ida e vinda a textos distintos é um convite ao desespero.

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Ter uma pressão externa ajuda. A obrigatoriedade de entrega faz com que eu priorize minhas atividades e dá aquele empurrãozinho que faltava. Por outro lado, tenho tentado me disciplinar, aos poucos, em criar objetivos e metas, tanto em número de textos mensais quanto em relação a temas que precisam ser tratados antes que outros. Pequenos planejamentos são recomendáveis, desde que realistas.

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Terminar um texto me traz sentimentos diversos. Alguns, de satisfação, por ter sido bom de fazer ― até divertido ― e fluído bem, apesar do trabalho de sempre. Outros trazem uma sensação de alívio por terem terminado, pelo alto grau de dificuldade. Os piores são aqueles que trazem um misto de alívio e tensão: foi bom terminar, mas tão desgastante que o cansaço fica evidente. Há os que termino com certa indiferença, mas são raríssimos. Afinal, não quero divulgar algo que não ache que tenha qualidade. E, afinal, não faz nenhum sentido publicar um texto que nem eu gosto ― como achar que qualquer leitor deveria perder o tempo lendo algo assim? Se você chegou até aqui, fique tranquilo, este texto se encaixou na primeira categoria.

Rafael Fernandes
São Paulo, 12/8/2009

 

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