busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Quinta-feira, 16/7/2009
Bafana Bafana: very good futebol e só
Vicente Escudero


A maior goleada da Copa das Confederações: Sorvete 5 x Criança 0

Disse o filósofo do futebol, Neném Prancha, certa vez: "Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária não perderia uma". A Copa do Mundo da África do Sul acontece em 2010 e o pensamento do ingênuo filósofo, útil apenas para o futebol, poderia ser reeditado na véspera da competição, incluindo-se o desfecho: "... e a África do Sul teria um dos maiores campeonatos intramuros do mundo".

Amigos se reúnem, decidem as datas e os locais de estadia, economizam dinheiro e partem para assistir a Copa do Mundo num país que, há vinte anos, era regido por um severo sistema de segregação racial: brancos de um lado, no rúgbi, negros de outro, no futebol. A diferença vai além do membro que conduz a bola. Se os amigos que partem para a África do Sul decidirem conhecer a área indicada pela organização do torneio, formada pelos centros econômicos, as sedes escolhidas pela FIFA, como Durban, Cidade do Cabo e Pretória, terão que se preocupar com criminosos eventuais, punguistas e aborrecimentos menores. Entretanto, se a escolha for conhecer a África do Sul abandonada, cercada por muros e grades, alheia à pujança de eventos do porte da Copa do Mundo, talvez os amigos não retornem. E o "talvez" torna-se quase um eufemismo, tratando-se da violência urbana no país que produziu pessoas como Nelson Mandela e Desmond Mpilo Tutu e, hoje, tem o segundo maior índice de sequestros do mundo.

Foi-se o tempo em que a Copa do Mundo era realizada em países com estrutura para receber visitantes de todas as nacionalidades. A escolha da África do Sul para 2010 e do Brasil para 2014 demonstra que a FIFA está mais engajada na busca do retorno financeiro para o torneio do que na celebração da união pelo esporte. A África do Sul necessita de estádios ou as pessoas segregadas na periferia, vivendo entre uma população que diminuiu em trezentos e setenta mil habitantes, durante o ano de 2003, vitimados pela AIDS, necessitam de auxílio médico? O Brasil também não escapa da estatística; uma passagem pela linha amarela, no Rio, é prioridade, mais do que urgente, para muitos anos de investimento público em infraestrutura.

Seguindo os esqueletos tortuosos de obras mal-acabadas e infraestrutura falha, um repórter brasileiro, antes do primeiro jogo entre Brasil e Estados Unidos na Copa das Confederações, errou o caminho para o centro de imprensa e, numa caminhada sem interferências, deu de cara com os vestiários das seleções. Quem jogou dois aviões contra duas torres na cidade mais rica do mundo não poderia querer facilidade maior.

Outros problemas de organização também foram mostrados exaustivamente pela imprensa durante a Copa das Confederações. O transporte público da maioria das cidades-sede é precário, funcionando com o auxílio de peruas, não recomendadas para estrangeiros. A dificuldade encontrada pelos turistas para se localizarem nas cidades também não foi solucionada e não havia voluntários treinados o bastante para ajudar no deslocamento dos estrangeiros. E é nessa indefinição que o discurso vazio vai preenchendo as reclamações: estamos terminando os estádios, estamos treinando o pessoal, até a abertura tudo estará pronto...

O espírito agregador, que em 2010 poderá comemorar a primeira participação simultânea da Coréia do Norte e da Coréia do Sul numa mesma Copa, parece estar em perigo. Não me recordo de outra Copa do Mundo onde havia tamanha incerteza e receio sobre o futuro, nem que se tenha discutido tanto sobre segurança e estrutura. Em 1996, na Olimpíada de Atlanta, houve um problema grave na infraestrutura de transportes, que acabou atrasando os ônibus para turistas e algumas competições, mas tratou-se de um caso isolado e a cidade contornou o problema em pouco tempo. Ainda assim, ele havia sido causado por um número muito acima do esperado pela organização de visitantes, situação excepcional que não corresponde a ausência de planejamento. No caso da Copa na África do Sul, a cada novo problema, uma onomatopeica vuvuzela surge nos bastidores para abafar, como as matracas usadas antigamente para enganar os adversários na guerra.

Mesmo as intenções do governo sul-africano sendo as melhores possíveis e com o esforço da população para receber os visitantes, falta estrutura para a realização da próxima Copa do Mundo. Gradativamente, foi ficando claro na Copa das Confederações que a vontade do povo sul-africano de ajudar no sucesso do torneio é muito grande e que a maioria dos erros banais foi causada por ingenuidade e pela ansiedade de serem bons anfitriões, uma tentativa justa de apagar a imagem de país violento e dividido. Mas a Copa do Mundo está muito além do querer ser. Pessoas de todo o mundo comparecerão em 2010 sem a menor ideia dos limites excepcionais impostos pela desorganização. A maioria desconhece a criminalidade que assola o país, não sabe que em 2002 a África do Sul era o país com mais homicídios cometidos através de armas de fogo (exatamente 31.918 mortes). É possível, até 2010, abrandar tudo isso?

As imagens que guardo da África do Sul são a de Nelson Mandela e de Desmond Tutu. O primeiro, pela resistência pacífica na luta contra o apartheid. O segundo, pela coragem na elucidação da violência de defensores do regime racista e dos que lutavam para derrubá-lo. Mesmo sabendo que em Durban, para que um turista vá até uma casa de câmbio, o hotel providencia quatro ou cinco seguranças de escolta, e que este carro foi inventado lá, ainda torço pelo bom futebol dentro do campo. Ou que Joel Santana contribua com mais algumas pérolas do rei do bardo funkeiro. Em 2010, vai ser assim: the equipes will play futebol very hard. Torçamos para que o hard fique no field.

Vicente Escudero
São Paulo, 16/7/2009

 

busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês