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Quarta-feira, 14/11/2001
O inventário da vida
Paulo Polzonoff Jr

Por um destes motivos que não convém esmiuçar, Georges Perec recebeu, no Brasil, o rótulo de escritor pós-moderno. É uma pecha depreciativa, que os críticos em geral dão àquilo que não entendem. São poucos os que entendem o pós-modernismo com seu caráter real, ou seja, de baixo-modernismo. Para a maioria, o pós-modernismo determina um momento da literatura que está além (para cima) da revolução modernista. Um engano que leva a algumas excrescências, como a de colocar, no mesmo balaio de gato, Cortazar, Perec e Pynchon.

O pós-modernismo se caracteriza, antes, pela ausência de um caráter permanente nas obras. Coisa que não se pode dizer dos livros O Arco-Íris da Gravidade ou O Leilão do Lote 49, de Thomas Pynchon, ou deste Vida Modo de Usar — Romances, que infelizmente só tenho o prazer de ler agora, e ainda por cima graças à indicação indireta de outro escritor francês que admiro muito, Michel Houellebecq, autor de Partículas Elementares, publicado aqui pela editora Sulina, e Plataforme, livro ainda inédito em português. Escrever sobre este Vida Modo de Usar tem tão-somente o propósito de apresentar Georges Perec a quem ainda não o conheça.

Pode-se chamar o romance de um mega-romance, bem ao estilo cortaziano em O Jogo da Amarelinha. Tanto é assim que o livro traz como subtítulo “romances”, no plural. Logo às primeiras páginas somos apresentados a uma variedade de personagens dispostos numa variedade de ambientes, equilibrados bastante fragilmente numa linha-mestra lógica, no caso específico de Vida..., uma linha que tem como espelho lingüístico um quebra-cabeça, ou melhor, puzzle.

A leitura de Vida..., portanto, se torna mais e mais obscura na medida em que se entra na narrativa. Aliás, o termo “entrar na narrativa” não é casual. Perec nos convida a conhecer cada aposento de um prédio em Paris, onde moram os personagens excêntricos cujas histórias o francês nos contará nos mínimos detalhes. Primeiro, levados pela escadaria, subimos os degraus, alheios ao elevador antigo que certamente está colocado no centro do corrimão em espiral, e chegamos aos quartos; depois aos depósitos e às áreas comuns, onde raramente os personagens se encontram ou insinuam encontrar-se. Cada lugar deste nos faz lembrar da expressão “porões da alma”, cunhada nos consultórios de psicanálise.

Esta entrada nos “porões da alma” de gente como Beaumont, Moreau, Altamont, Márcia e o morto mas onipresente Winckler nos leva a um labirinto bastante confuso. Ao leitor não cabe querer chegar ao centro, onde se esconde o Minotauro; convém, antes, divertir-se com as inúmeras possibilidades do labirinto, de paredes fortemente marcadas com uma rica iconografia, ali marcada para deliciar os que se perdem, com histórias como a “História do antropólogo incompreendido”, a “História do capitão que explorou a Nova Guiné” e a “História do acrobata que não queria descer mais do trapézio”. São croniquetas inseridas na narrativa, que fazem as vezes de enfeite rococó.

Beaumont pode ser considerado o protagonista deste Vida.... É um erro facilmente corrigível, mas tentador de ser cometido. Fenômeno interessante, esta necessidade de se achar um protagonista. Beaumont é o homem rico dono da maior parte do prédio, um aristocrata excêntrico que, durante vários anos andou de porto em porto ao redor do mundo para pintar marinas que depois eram remetidas para Paris, onde o sr. Winckler as transformava em puzzles cada vez mais difíceis de serem montados. Nos últimos anos a tarefa do já debilitado Beaumont é remontar suas marinas, à velocidade de uma a cada duas semanas. São 500 marinas.

Por mais estranho que pareça, Beaumont é, no caleidoscópio de seres estranhos que habitam aquele singelo prédio residencial em Paris, dos mais normais. Ele é um dos únicos que não têm um grande drama familiar que o deixou psicologicamente inválido. Na verdade, sua obsessão por marinas e puzzles são o que lhe confere esta sanidade. Perec quer, com isso, denunciar o já diagnosticado declínio da aristocracia européia. Com as burras cheias de dinheiro mas sem sentido para a vida, o que resta se não enlouquecer sadiamente, montando quebra-cabeças tediosos?

O que chama a atenção ainda no romance de Georges Perec é a profusão de objetos que se dispõe pelos cômodos do prédio. Cadeiras de todos os estilos, mesas, cômodas, armários, estantes cheias de livros encadernados em couro legítimo, estatuetas, relíquias, tapetes, sofás, cortinas, ferramentas de marcenaria, restos de artesanato para futuro artesanato, cabides, latas de conserva, prataria, cristais, malas de viagem, porta-retratos, frascos de remédios para dormir, aparelhos de telefone, toda sorte de objetos de higiene e limpeza, etc. A enumeração destes objetos, ao longo do romance, chega a ser exaustiva, não oferecesse um panorama mais do que completo da vida dos personagens.

A idéia de Perec é interessante. O homem passa; o objeto fica. Ele contesta a imortalidade do humano a partir da simples descrição daquilo que o rodeia. Um homem, durante a vida, cerca-se de vários objetos de estimação. Eu mesmo tenho uma caixa entupida de objetos que me fazem lembrar de bons e maus momentos de minha curta vida. Porta-retratos com fotografias que não quero ver, marcadores de livros de ouro, anéis de charuto, um copo de uísque roubado de um casamento, livros e mais livros, além da parafernália eletrônica hoje indispensável e que aos poucos vai se tornando também parte desta tralha afetiva, como convém chamar.

E quando morrem os homens, o que resta? Dele, cinzas, se tiver a sorte de ser cremado. Cinzas que, por sinal, vão ser depositadas num objeto que entrará para a lista de tralha afetiva da família. Restam do homem, ainda, estes objetos que contam sua vida e lhe fazem as vezes de memória. É assim uma espécie de biografia sutil que se conta pelas impressões digitais em cada uma das coisas.

Todos os personagens de Perec, de um modo ou de outro, acabam perecendo. Na verdade, pode-se pensar neles como não-personagens, seres sem rosto, sem voz, sem nada, apenas trazidos à tona pelos bricabraques que os acompanham. É o caso, novamente, do sr. Beaumont, que não é absolutamente nada sem suas aquarelas, suas tintas e, agora, velho, seus puzzles por montar. Destrinchando o romance de Perec, temos o mordomo do sr. Beaumont, que é essencialmente os cartões-postais que acumulou durante os anos em que acompanhou o seu patrão nas viagens pelo mundo. E por aí vai.

Perec foi um dos últimos representantes do genuíno romance, concebido para ter a maior abrangência possível, dentro de seus restritos limites de páginas e linguagem. Além disso, sempre procurou dar um sentido lógico a todos os passos de seus personagens, que se interligam por falsos-acasos muito bem articulados. A linha-mestra deste romance são os puzzles, que dão um caráter matemático à vida, uma falsa sensação de poder sobre estes lances dos quais não damos conta. Montando os quebra-cabeças acabamos por montar aos poucos nosso passado, nossa história, reservando-nos o direito de não montar as partes que achamos menos atraentes destas marinas tediosas que nós mesmos pintamos no dia-a-dia.

Em 1982, aos 46 anos, Georges Perec morreu. Deixou órfã a literatura francesa, que andou muito tempo na corda bamba do discurso marxista fácil, do romance-de-proletariado. Este tipo de romance foi exportado e hoje tem grande força nos Estados Unidos, principalmente pelas cabeças de John Updike, que está sempre revisitando algum clássico, Shakespeare de preferência, com um toque classe-média intelectualizada; e por Phillip Roth. Só agora, nos anos 90, a literatura francesa ganhou um novo impulso, principalmente com a figura ainda solitária de Michel Houellebecq, escritor que sabe misturar cientificismo e literatura deliciosamente. Houellebecq se diz um aficcionado por Georges Perec, o que é plenamente compreensível. É aquela velha história de olhar sobre ombros de gigantes... Perec e Houellebecq têm em comum uma característica que talvez os escritores tupiniquins devessem de uma vez por todas reverenciar: o gosto pela palavra. Pode parecer uma incongruência, mas os escritores brasileiros estão mais interessados em picuinhas tipo Academia Brasileira de Letras do que fazer uma literatura que realmente cause algum tipo de reação nos leitores. Ora, já que importamos tanta porcaria francesa, como Bourdieu e, em outros tempos, Sartre, talvez seja tempo de importarmos o que a França tem de realmente bom: Houellebecq e Perec, por exemplo.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 14/11/2001

 

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