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Quinta-feira, 15/11/2001
O Segredo do Vovô Coelhão
Adriana Baggio



Os livros sempre foram meus grandes companheiros. Já deixei de lado muitos programas que outras pessoas considerariam imperdíveis por não poder largar um livro. Parece caixa de chocolate, a gente não sossega enquanto não termina. Alguns livros devorei de forma tão sôfrega, desenfreada, que acabo não lembrando mais deles, nem do título, nem dos detalhes da história. É por isso que fica difícil escolher o livro que mais gostei em toda minha vida. O que eu sei com certeza é da importância que a leitura teve na minha formação. É lugar comum falar que as pessoas ficam melhores à medida que lêem mais. No entanto, se essa óbvia teoria fosse assim tão recorrente na prática, o brasileiro seria um povo com melhores condições de vida, de trabalho,etc.

Se hoje sou essa leitora voraz, com certeza é por culpa da minha mãe. Uma das lembranças mais agradáveis da minha infância é eu e meu irmão na cama dos meus pais, um de cada lado da minha mãe. Ela comprava para a gente uns livrinhos da Coleção Beija Flor, publicados pela Editora Abril. Os livrinhos eram quadrados, de capa dura, com a lombada dourada cheia de beija-florezinhos estampados. Alguns títulos eram de contos de fadas clássicos, como A Bela Adormecida, e outros eram pura novidade para nós. Não sei se ela comprava em livrarias ou se era uma coleção como essas que hoje se vende em bancas de jornal, e a gente compra um exemplar a cada semana ou 15 dias. No interior da capa dura havia um espaço para colocar o nome do proprietário do livrinho. Todos os livros iam com o nosso nome, meu e do meu irmão, mas a cada vez o nome de um de nós ia por primeiro. Lógico que muitas brigas aconteceram para decidir quem ia por primeiro, quando a gente esquecia a ordem do negócio. O ritual era o seguinte: minha mãe pegava o livrinho, abria, e escrevia o nome dos "proprietários". Depois, lia as histórias para nós. Não sei se eu já sabia ler, mas de qualquer maneira, era ela que lia. Muitos, muitos anos depois, folheando esses livrinhos, ao ver as figuras, consigo sentir as mesmas sensações que tive na época. As coisas que me impressionaram, as figuras que mais me encantaram, as viagens que minha imaginação fazia com base naquelas histórias e naqueles desenhos.

Continuei lendo sempre, os livros infantis para crianças maiores, depois os livros da escola. Quando todo mundo odiava ler, eu adorava. Ah, que bom se todas as provas se baseassem em livros! Como minha casa sempre foi cheia deles, às vezes caiam em minhas mãos coisas que eu não deveria ler. Li escondido "Christiane F.", dei uma folheada em um livro sobre Olga Prestes, enfim, li coisas que não eram muito adequadas para minha idade. Mas essa história de adequação era muito relativa. Apesar de sempre ter conversado com minha mãe sobre sexo, muitas coisas as mães não contam prá gente, ou falam de uma outra maneira muito técnica. Assim, minha formação teórica sexual foi completada lendo escondido páginas e páginas de Harold Robbins, e uma vez, consegui ler um Sidney Sheldon inteiro sem minha mãe ficar sabendo. Essas "leituras" dão uma sabedoria emprestada, que a gente não tem, mas que soa muito convincente para quem não sabe a origem do conhecimento. É como ler "Paris é uma festa", de Hemingway. Se você começar a falar sobre Paris com base no que ele escreveu, parece que você esteve lá pessoalmente.

Mais tarde, na faculdade, tive a sorte de poder contar com um professor maravilhoso: Cristóvão Tezza. Além de ser maravilhoso como escritor, também era como professor. No primeiro dia de aula ele passou para a turma uma lista com 50 (ou 100, não lembro...) livros que achava que devíamos conhecer. Estavam nessa lista John Fante, Bukowsky, Huxley, Orwell, Salinger, enfim, coisas que todo mundo deveria ler. Foi um guia e tanto. Seria maravilhoso se todos os alunos tivessem essa oportunidade. Porque não basta gostar de ler, é preciso ter acesso a coisas boas, sempre é necessário uma pré-seleção. Senão, a gente acaba lendo muita besteira. Também nada contra as besteiras literárias, pelo menos quanto às divertidas. Mas é bom haver um equilíbrio.

Hoje as livrarias me proporcionam um misto de prazer e ansiedade. Prazer pela enorme quantidade de livros, ansiedade por ter que escolher apenas um ou (poucos) alguns para levar de cada vez. Além do dinheiro, há que se levar em conta o tempo. Por mais que eu adore mergulhar em um livro, sinto-me obrigada a pensar nas outras atividades também. Caso contrário, acho que seria como dependência química: a pessoa começa a deixar de lado o trabalho, estudo, amizades, para ficar enfurnada em um livro. A conseqüência é que acabo lendo várias coisas de uma só vez. Romance como lazer e dois ou três livros técnicos por necessidade de trabalho ou estudo.

Falei, falei, mas ainda não escolhi meu livro preferido. Já que pretendo ser coerente com o tema deste especial do Digestivo, vou tomar minha decisão. Usando tudo isso que escrevi acima como justificativa, posso dizer que o livro que mais me marcou foi um daqueles da minha infância. Antes dos clássicos, antes das bobagens best-sellerianas e pervertidas de Harold Robbins. Aqueles livrinhos que minha mãe me deu e leu para mim foram responsáveis por todas as coisas que li depois, as boas e as ruins. E dentre todas as lombadinhas douradas da Coleção Beija Flor que ainda guardo com orgulho na minha estante, escolho um daqueles que mais me traz lembranças. A capa vermelha mostra um coelho fumando seu charuto e apoiado em uma bengala. À sua volta, três coelhinhos segurando tinta e pincéis. O título é "O Segredo do Vovô Coelhão". Uma história que fala com simplicidade e beleza da morte. Hoje eu sei disso. Mas na época não sabia. Vovô Coelhão ensinou seus filhos e netos a pintar as cores do verão, do outono, do inverno e da primavera. Um dia Vovô Coelhão vai embora, mas diz às crianças que voltará, e que elas devem guardar segredo. Enquanto os coelhos adultos se perguntam onde está o Vovô, as crianças apenas sorriem. Um dia, depois de uma tempestade, todos saem de suas tocas e o segredo é revelado: Vovô Coelhão voltou na forma de um céu com as cores mais lindas, como nunca se tinha visto antes. Não tenho como expressar o que sinto, o que lembro, quando vejo as gravuras desse livrinho. Parece que ele é como o Vovô Coelhão: sua época já passou, mas ele deixou meu céu muito mais colorido desde então.

Adriana Baggio
Curitiba, 15/11/2001

 

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