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Quinta-feira, 27/8/2009
As tentações do novo livro de Mayra
Marcelo Spalding

Quando uma adolescente estreia na literatura com um romance em primeira pessoa, é quase inevitável que a história seja autobiográfica e a narradora uma espécie de alter ego da autora. Ainda mais se a história é moderninha, descolada, cheia de sexo, drogas e rock'n'roll. O que não quer dizer, diga-se logo, que essa estreia será frustrada, e a autora, ruim. Fugalaça, de Mayra Dias Gomes, publicado em 2007, mostra que é possível uma adolescente narrar suas "peripécias" com um ritmo capaz de prender o leitor e ideias suficientes para superar eventuais clichês e pieguices. Na época, Mayra disse que Fugalaça era um "vômito literário", e comentei em resenha sobre o livro que o "vômito" era uma tentativa desesperada de compreender-se pelo resgate da memória, de ser aceita pela exposição, de reparar conflitos e dilemas insuperáveis pela aparente lógica proporcionada pelo papel.

Agora, dois anos depois, apenas dois anos depois, Mayra publica um novo romance, e novamente pela Record (decerto satisfeita com as vendas do primeiro), e novamente em primeira pessoa, e novamente com uma narradora mulher em busca de identidade. Mas, pasmem, ela resistiu à tentação: Mil e uma noites de silêncio (Record, 2009, 308 págs.) não é um novo Fugalaça.

Tentações, aliás, não faltaram nem para a protagonista nem para quem se aventura a comentar o livro. Comecemos pelas tentações para quem se aventura a comentá-lo:

A primeira tentação seria ler o segundo livro sob o mesmo prisma do primeiro, uma história autobiográfica, um alter ego de uma narradora jovem demais para imaginar histórias. E seria um olhar absolutamente preconceituoso e injusto com o novo romance de Mayra, que apresenta personagens densos, revela uma trama intrincada e se constrói a partir de uma imaginação privilegiada.

Outra tentação seria relacionar sua história com a literatura produzida pela "nova geração", uma geração de sexo, drogas e internet. E realmente encontraremos nessas mil e uma noites a droga, muitas drogas, ainda mais se entendermos álcool e remédios como drogas, mas dessa vez a droga não move as ações da protagonista e ela não terminará num leito de hospital depois de tentar o suicídio: Mayra soube superar esse perfil já estereotipado de menina rica e aborda o delicado tema do abandono em tempos de relações familiares fragilizadas.

Terceira tentação: ler o livro em paralelo com As mil e uma noites, e Clara seria uma nova Sherezade tentando sobreviver à depressão, aos abandonos, enquanto a degola do sultão seria sua própria apatia, capaz de fazê-la, por vezes, desejar a morte. Leitura possível, mas o título parece mais um jogo de palavras do que um sinal de intertextualidade, não há sequer a menção de que mil e uma noites separam o começo da narrativa do fim (e bem poderiam sê-lo).

Verdade que talvez todas essas leituras fossem válidas, mas se ficarmos apenas com uma delas será reduzir demais a obra: Mil e uma noites de silêncio é um romance que afirma Mayra como escritora, tirando-a do romance-diário, e deve mexer com uma geração carente tanto de afeto quanto de boas histórias que a represente.

Os dois temas predominantes da obra, tratados sem superficialidade e sem falsas soluções, são temas que parecem incomodar demais as novas gerações: a solidão e a identidade. Clara é uma menina abandonada pela mãe, adotada ainda bebê e que perde a mãe adotiva para o câncer pouco depois de ser deixada pelo noivo em pleno altar. Quando se vê sozinha, cheia de lembranças, saudades e pudores, perde as forças e se deixa levar por profunda apatia e resignação. A partir daí, questiona sua própria identidade e, por conseguinte, sua própria noção de realidade.

"Carente de afeto, eu me agarrava às verdades absolutas com as quais eu havia convivido até então. De qualquer forma, mesmo com esta repentina noção de realidade, ainda acreditava nas mesmas coisas."

A realidade, para Clara, não é o mundo de medos e saudades de sua cabeça, um mundo que não a permite viver a vida lá fora, se envolver. Mas também não parece ser a vida a dois que ela aos poucos constrói com um namoradinho, Lukas. Quando vai para o interior atrás de uma amiga, conhece a face da prostituição, das drogas, da miséria, e por vezes acredita finalmente ter encontrado o "mundo real". Mas não, também não é essa a realidade. Nem será quando finalmente procurar por sua mãe natural, pois descobrirá que também a vida familiar e "bem-sucedida" de uma família como aquela pode ser uma grande mentira.

No meio disso, as drogas (bebidas, remédios, entorpecentes) surgem mais como consequência do que como causa. As pessoas ao redor de Clara fumam, bebem, injetam, algumas de forma absurda, outras tentando conciliar a droga com seu cotidiano.

"Sozinha na mesa, eu analisava os convidados. Estava impressionada com a presença incessante da droga em minha vida. Mesmo que eu não fizesse uso de substância ilícitas, elas sempre encontravam uma maneira de afetar o ambiente em que eu vivia. O mundo inteiro parecia estar drogado."

Clara, porém, diferentemente da protagonista de Fugalaça, irá se manter longe das drogas, o que pode soar como careta para alguns leitores "descolados" mas condiz mais com a atitude de uma menina inteligente em busca de raízes, de respostas, e não de um prazer hedonista e fugaz.

Por fim, é de se saudar que Mayra Dias Gomes tenha resistido à tentação de se repetir numa provável continuação de Fugalaça e de se esperar que prossiga aperfeiçoando a técnica para dar vazão ao turbilhão de emoções e imagens que dela brotam. Imaginação e ritmo a menina tem de sobra.

Para ir além





Marcelo Spalding
Porto Alegre, 27/8/2009

 

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