busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Terça-feira, 20/11/2001
3 Grandes Escritores Maus
Alexandre Soares Silva

Não se escreve sem veneno. Não se escreve sem violência. Literatura é civilizatória (talvez), mas não é civilizada- uma grande diferença. O escritor está mais perto do saqueador, roubando e destruindo, do que do juiz, do dentista, do presidente do Rotary Clube.

Lembro que quando eu tinha nove, dez anos, escrevi um livro, o terceiro ou quarto que comecei e nunca terminei, sobre uma revolução na minha escola. Os alunos tinham prendido os professores numa sala. A professora de geometria (uma mulher chamada Olanyr) tinha sido amarrada no alto de um poste fincado no centro exato da quadra de vôlei. Era o “Poste dos Martírios”. As crianças jogavam machados nela. Eram machadinhos, pequenos e leves, e ela não morreu logo, se me lembro bem - um machado entrou na perna, outro na mão, outro ainda na madeira...O pecado dela não era que ela quisesse nos ensinar, é claro, mas o fato de ser muito antipática. Meus amigos acharam graça. Alguns, os mais bobinhos, ficaram chocados. Alguns colaboraram com ilustrações.

Mas o fato é que por trás de grande parte da literatura existem sentimentos parecidos com esse, mais ou menos disfarçados. Está certo que comparar Jane Austen com um pirata, digamos, é um tanto absurdo, e que tentar ver Henry James como saqueador não é só grotesco, é impossível. Mas há uma longa linhagem de Grandes Escritores Maus: Saki, Sinclair Lewis, Auberon Waugh, Barbey D’Aurevilly, Nicolau Tolentino, Gregório de Matos, Aretino, Patricia Highsmith, Flaubert, Zola, Oscar Wilde, Jonathan Swift...

A seguir vão três Grandes Escritores Maus. São três; eles são inegavelmente grandes; e que são mauzinhos, são. Fazem parte da escola Assusta-Velhinha de literatura, cujo santo padroeiro é Saki, o autor de um conto em que uma menina chatinha é devorada por um lobo por ser excessivamente virtuosa (The Story-Teller), e de um outro em que uma tia chata é devorada por um deus encarnado no corpo de um furão (Shredni Vashtar), para a alegria do sobrinho de 10 anos.

1) Vladimir Nabokov - Basta ler “Lolita”, um livro em grande parte escrito em animosidade contra a vulgaridade pop americana (não, me deixe reformular isso: contra a vulgaridade mundial). Ou a transcrição das aulas de Nabokov, dadas na Universidade de Cornell. Para o ódio de muitas pessoas (uma delas escreveu um artigo recentemente na Folha chamando Nabokov de “criminoso intelectual”), ele odiava Dostoiévski, Thomas Mann, Sartre, Camus, os beatniks, os adeptos da literatura engajada, os opositores da Guerra do Vietnã...e “livros bonitos”, como “Dr. Jivago”, de Boris Pasternak.

2) Evelyn Waugh - Waugh já foi chamado de “Gênio do Mal”. Hillaire Belloc, o poeta e polemista, quando foi apresentado ao jovem Waugh, disse que ele estava “com certeza possuído” (Belloc era católico e disse isso muito a sério). Waugh era esnobe, e era cruel. Desprezava o próprio pai porque o pai era de classe média. Desprezava (um pouco) os próprios filhos porque “crianças e adolescentes não tem distinção de modos ou de gosto”. Mas era muito engraçado. Leia “Um Punhado de Pó”, “O Ente Querido”, “The Ordeal of Gilbert Pinfold”. Junto com Nabokov, Waugh foi (na minha opinião, é claro- é preciso dizer?) o maior romancista do século. Ninguém escreve melhor do que ele.

3) Eça de Queiroz - Machado de Assis está para a ironia como Eça de Queiroz está para o sarcasmo. Eça, quando escrevia, desprezava o mundo de um modo violento. É difícil imaginar no mundo criado por Eça o homem sendo capaz de chegar à lua, por exemplo. Os astronautas passariam o tempo todo na terra passando xampú contra caspa, arrotando, escrevendo artigos políticos cheios de banalidades e exclamações.

Eça se dizia defensor do que ele chamava de “a bengalada do homem de bem”. Mas verdade seja dita, muitas vezes a sua bengala se descontrolava e ele assumia uma certa semelhança com Mr. Hyde (aquele), que numa certa manhã de Londres fez um cadáver quicar na calçada com o uso similar da bengala. Se você não tem paciência para livros compridos, leia “O Conde D’Abranhos”. Que escrevia maravilhosamente bem, não preciso dizer, preciso?

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 20/11/2001

 

busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês