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Terça-feira, 18/8/2009
O livro de Dave e seu tradutor
Rafael Rodrigues

O romance O livro de Dave (Alfaguara, 2009, 456 págs.), mais recente livro do escritor britânico Will Self publicado no Brasil, se passa em dois períodos históricos: fim do século XX/ início do XXI, em capítulos protagonizados por Dave, um taxista em crise e desiludido que resolve escrever um livro contra tudo e contra todos; e séculos e séculos adiante, depois de uma catástrofe ambiental na Terra, em capítulos protagonizados pelo pequeno Carl ― que curiosamente tem o mesmo nome do filho de Dave. Nesse "novo mundo", o livro escrito por Dave é encontrado enterrado em algum lugar e passa a ser adotado como uma espécie de bíblia pelos habitantes, que se referem a Dave como "o motorista", numa clara troça de Self com "o Criador".

Em um dos capítulos, Will Self mostra como era a vida de Dave nos idos de 1992 e de como ele foi afetado pela crise econômica que a Inglaterra enfrentou nas décadas de 80 e 90. Nesse capítulo, Self alterna a voz do narrador onisciente com palavras do próprio Dave, inclusive dentro da mesma frase (a exemplo do que fez o brasileiríssimo Flávio Moreira da Costa em As armas e os barões). Livros como esses, que além de contar uma boa história deixam de lado as "amarras formais", digamos assim, costumam não agradar a maior parte dos leitores, acostumada que está ao "feijão com arroz", à literatura tradicional. Nada contra o "feijão com arroz" nem contra quem torce o nariz para estruturas que fogem do padrão, mas muita gente não se aproxima de livros assim porque subestima a própria capacidade de leitura ― e é sempre um erro se subestimar. Resultado: perdem a oportunidade de ler bons livros, os quais nada têm de muito complicado (a não ser que estejamos falando de algo do quilate de Finnegans Wake, de Joyce). O que não é o caso, apesar de ser a linguagem um dos aspectos que mais chama a atenção em O livro de Dave.

No mundo futuro imaginado por Will Self, fala-se a língua dos "miguxos". Logo no início do livro nos deparamos com isto: "Isseu tchivessi lencima, pensou Carl, lencima comu u Flain Ai?". (É quase certo de que é uma crítica de Self a esse "novo idioma" disseminado nos instant messengers.)

E foi justamente esta característica que quase impediu O livro de Dave de ser traduzido ― não só aqui, no Brasil, mas em outros países também, pois nenhum dos tradutores habituais de Self aceitou traduzi-lo (um tradutor francês que resolveu encarar o desafio chegou a adoecer enquanto tentava verter o livro, tamanho foi o desgaste).

A versão brasileira do romance, que foi a primeira tradução do livro em todo o mundo, ficou a cargo do experiente (e corajoso) tradutor Cássio de Arantes Leite. Na entrevista a seguir, realizada via e-mail, Cássio fala sobre sua carreira, mercado editorial, tradução e, claro, sobre como foi verter O livro de Dave para o português.

1. Como e quando você iniciou sua carreira no mercado editorial?

Eu comecei com uns 17 anos (82, 83) datilografando originais copidescados para a produção de fascículos, um bico que me levou a ter contato com jornalistas, redatores, revisores, tradutores etc. e a conhecer o trabalho editorial (eu já era do time do "texto", não da "arte"). Depois, passei por várias etapas, como revisor, secretário editorial, editor-assistente, preparador de textos, editor, atuando em mais de uma área em momentos distintos: fascículos, livros didáticos, literatura e ensaio, catálogos de arte, materiais pedagógicos do governo etc., até publicidade. Nesse meio tempo, vivi períodos como freelancer e períodos contratado. De forma resumida, entre idas e vindas, eu diria que atuo no meio editorial há mais de vinte e cinco anos e, como tradutor, há pelo menos dez.

2. No mercado editorial há uma quantidade enorme de livros mal traduzidos, e muitas vezes as pessoas os compram sem saber que estão pagando por um trabalho malfeito (ou até sabem, mas não se importam). Você poderia falar um pouco sobre esse assunto?

Acho uma questão intrincada, que envolve formação do leitor, nível do ensino em geral e falta de profissionalismo/boa-fé de algumas editoras. Como não existe proteção para o consumidor (você não pode devolver um livro por tradução "defeituosa" ou entrar com uma ação contra o editor, pode?, como faria no caso de outro produto ou serviço), fica por conta do próprio consumidor se educar e selecionar melhor. Quanto ao tradutor ruim, cabe às editoras realizar o filtro. É o processo natural de qualquer mercado, embora eu reconheça que a lógica possa ser um pouco perversa, às vezes, e a relação seja assimétrica. Mas não vejo saída senão a autorregulação.

Não precisa conhecer a língua original para perceber que está mal traduzido. Basta ser um leitor competente em sua própria língua, no caso o português brasileiro. Um livro feito nas coxas, por um editor picareta, com tradução meia boca não deveria ter mercado, só isso. Mas o mercado, nesse caso, excetuando o papel do livreiro, é o público (nesse caso porque, para parte da indústria, o mercado é o governo, e aí é um capítulo à parte...), e se o público não tem formação, vira um círculo vicioso.

Edições ruins (não é preciso pensar apenas na tradução, o livro pode ser mal revisado, mal produzido, mal-encadernado etc.) são um problema grave, como você apontou, mas não esqueça que o setor convive até hoje com a infâmia do plágio: crime contra editoras, autores, tradutores, consumidores, contra a sociedade em geral. Quem sabe um dia o poder público resolva mostrar o mesmo ímpeto pedagógico com que gasta milhões em compras de livros didáticos cheios de erros e simplificações todos os anos e exerça seu papel fiscalizador, simplesmente? (Mas, para se manter informado sobre o assunto, indico o blog de Denise Bottmann, em sua cruzada contra o plágio.)

3. E os prazos para a entrega das traduções? Tem editora que faz a encomenda "para ontem"?

Nunca tive problemas com prazo. Um artigo traduzido para uma revista ou jornal (impresso ou não) tem prazo, afinal se trabalha com fechamento, a periodicidade é diária, semanal, quinzenal, trimestral etc., mas nesse caso a quantidade de texto é pequena e não se exige (nem dá) grande pesquisa nem muita lapidação (os erros, se não forem ridiculamente gritantes, passam batido pelos leitores comuns). Já os editores de livros sabem perfeitamente calcular um tempo exequível de produção para seus títulos segundo o grau de dificuldade do texto, e sempre tendo em mente alguma cláusula contratual que estabeleça a data limite de publicação, multas por quebra de contrato, essas coisas. Para o tradutor, analisando o tamanho do livro, o tipo de texto e autor etc., fica fácil calcular o prazo, também.

4. Bom, vamos falar um pouco de O livro de Dave. Will Self afirma que nenhum dos tradutores habituais de seus livros quis traduzi-lo. Como a obra chegou até suas mãos?

Quando o Marcelo Ferroni (editor da Alfaguara/Objetiva) me passou o livro para analisar (2007), foi logo avisando que outro tradutor já tinha desistido etc. e tal. Eu examinei o texto e percebi que era praticamente ilegível, a uma primeira leitura. Mas fechei os olhos, respirei fundo e pulei (não sei se nessa ordem). Não foram poucos os momentos de desespero e a tentação de abandonar a tradução, confesso, mas pegar e depois abandonar no meio não é uma opção (para usar um clichê idiomático americano). Acho que isso pode queimar um pouco seu nome.

O livro de Dave toca numa questão crucial para os tradutores que vivem de frila: a sedução do desafio intelectual versus as finanças domésticas. Trabalhos difíceis são prazerosos, mas criam um buraco no orçamento familiar, pela lentidão da execução. Textos muito fáceis acabam cansando, a certa altura (levam à exasperação, até). A solução acaba sendo entremear as duas coisas, mas está longe do ideal.

5. Quanto tempo levou para O livro de Dave ser traduzido? Imagino que tenha sido bastante trabalhoso, a contar pelas "manobras estilísticas e ortográficas", digamos assim, que Will Self faz neste romance.

Um trabalho para cerca de quatro meses (465 laudas, para ser exato) se estendeu por um ano: fiz, entreguei, o Marcelo leu (são os editores que preparam o texto, na Alfaguara), devolveu, eu reli e acatei/recusei as emendas dele, foi para a prova, passou pelos revisores, eu reli a terceira e última prova, acatei/recusei emendas, mandei de volta e fim. Normalmente, o tradutor não lê a prova, esse caso foi uma exceção.

Contei com uma grande ajuda dos consultores Juliet e Mark Ament, feliz indicação "no escuro" de um amigo meu. Respectivamente, mãe e filho ― ela nascida na Inglaterra ―, os dois elucidaram inúmeras palavras e expressões que só um native speaker poderia entender. Uma ferramenta inestimável também foi o Urban Dictionary on-line, com suas gírias fresquinhas, cheirando a asfalto.

Compreendido o texto, resta traduzir (claro que na maior parte de uma tradução as duas coisas são feitas simultaneamente).

O pior de tudo, sem dúvida, foram os diálogos em mokni. Vi que alguns se referiram a isso como uma novilíngua criada por Will Self, mas não é bem assim. Pelo menos não no sentido de James Joyce ou Anthony Burgess, com aquela inventividade plurilinguística e pluricultural e toda aquela densidade poética. O mokni é apenas mockney, "mock cockney", isto é, o cockney (um dialeto e sotaque londrinos) fajuto, de imitação.

Você vê isso, essa sonoridade, nos filmes do Guy Ritchie; no filme Hooligans; no Laranja Mecânica, claro; em Bob Hoskins e seus capangas no Cão de briga; no Austin Powers (com Mike Myers e Michael Caine, impagáveis, conversando em gíria cockney rimada), e por aí vai.

Para entender o que estava escrito, ajudava fazer um exercício de ouvir mentalmente os diálogos sendo ditos por um personagem desses. Às vezes, eu tentava falar em voz alta, também (se não tinha ninguém olhando...). E também tinha toda a terminologia "däveana", o "vernáculo" do futuro, um legado de Dave e seu filho, cuja lógica é inerente ao livro (e cuja riqueza semântica, verdadeira joia da língua encontrada pelo autor, infelizmente se perde na tradução).

O que acabei fazendo foi puxar de ouvido um correspondente falado (não existe, ou pelo menos não achei, um acervo acadêmico de registros "populares", como é o NURC, da norma culta), que evidentemente pendeu para o "paulistanês", como não poderia ser de outra forma, no meu caso.

Mas o texto já teria sido difícil o suficiente sem isso. O "passado" vivido pelo taxista tem uma densidade linguística quase impenetrável, girando em torno dos inúmeros antagonismos sociais e existenciais vividos pelo personagem e expressados em parte naquela sua algaravia mental cheia de gírias: upper class versus cockney; urbano versus rural; natureza versus civilização; memória versus destruição; maternidade versus paternidade etc.

Para compreender toda a riqueza do livro de Will Self, acho que é preciso remontar à genealogia da sátira inglesa que vai de Jonathan Swift a J. G. Ballard (modelo confesso do autor), passando pelo Um cântico para Leibowitz de Walter Miller Jr., pela paisagem medievalesca e dickensiana da Nova Londres, pelo Riddley Walker de Russell Hoban, e talvez por outras referências mais que eu desconheça. Espero que alguém ainda dedique à obra toda a atenção que ela merece.

6. Houve contato direto com o autor, certo? Como foram essas trocas de informações?

As dúvidas enviadas para o Will Self foram mínimas (aliás, será possível que o nome dele seja esse, de verdade? não consigo acreditar). A gente não imaginou que ele fosse se mostrar com tamanha boa vontade, então só mandamos em último caso, palavras insondáveis: "tara", cockney que significa "tchau"; "Dossula", um trocadilho com o cockney "doss" (uma pocilga qualquer para dormir) e "drácula"; "fou fou", afro-caribenho londrino para "veado".

7. Você vai também traduzir ― ou já está traduzindo? ― The Butt, o mais recente livro de Self. Você está com o livro em mãos? É um trabalho menos "complicado" que O livro de Dave ou o grau de dificuldade é o mesmo? (Ou maior?)

Estou com o livro aqui na fila, só que ainda nem comecei, tenho coisas para terminar antes (mas não vai ser tão difícil quanto o Dave, eu acho). Depois do Dave, fiz outras traduções para a Alfaguara que saem em breve: Netherland, de Joseph O'Neill, que traduzi como Terras baixas, e Blood Meridian, ou Meridiano de sangue, de Cormac McCarthy. Duas obras-primas, assombrosamente bem escritas e complexas, uma literatura quântica (o significado, como uma onda/partícula, escapa quando você acha que enxergou) e, no caso de McCarthy, também mística.

8. Há quem diga que a tradução é, de certa forma, uma arte. É isso mesmo? Da mesma forma que uma pessoa encontra sua "salvação" no criar ficção outra pode encontrar a "salvação" na tradução?

Acredito que um livro muito especial pode mudar a vida de uma pessoa. Se um tradutor participou desse processo, sorte dele que o livro caiu em sua mão, e sorte do leitor que ele soube traduzir direito. Só isso. Não me vejo como um artista, nem um "transcriador", nem nada disso. Eu me acharia pretensioso e intelectualmente desonesto se me desse uns ares em cima da criação dos outros (embora reconheça que a tradução poética são outros quinhentos...). Fico feliz com a valorização do trabalho e gratificado com o reconhecimento, se houver, mas prefiro encarar a coisa em termos mais realistas e modestos.

Claro que, na soma geral de tudo que se traduz em um país, é óbvio que algum impacto na língua tem. E se um grande escritor (ou bom, ou médio) se dispõe a traduzir, tanto melhor, e maior o impacto, mas pelas qualidades inerentes ao modo como ele desempenha seu ofício, e que se refletem nesse subproduto da escrita (imagine se houvesse uma Bíblia traduzida por um padre Vieira, representando para nosso idioma o que a de Lutero representou para o alemão e a do rei Jaime para os ingleses. Será que não falaríamos outra língua hoje, não pensaríamos de outra forma?).

O tradutor é como um transdutor, uma máquina ou programa muito complexo: ele recorre a seus bancos de dados e busca o entendimento do que está sendo lido na língua A, depois ajusta o dial na língua B e escolhe o registro, coloquial, culto, empolado, seco, natural etc., valendo-se de sua capacidade de espremer o próprio idioma para buscar um sentido que dê a ideia menos pálida possível do que foi dito no original. Traduzir é um exercício constante de frustração, de saber que o melhor produto que sai deste lado da máquina está aquém daquilo que entrou.

Não tenho certeza se foi Mallarmé que disse, nem se com essas palavras, mas quando pediram pra ele definir poesia, ele disse: "o que perde na tradução".

Então, de certa forma, traduzir é tentar transpor o intransponível, tem menos a ver com salvar do que com morrer afogado...

9. Para finalizar: o que um tradutor iniciante ou aspirante a tradutor deve fazer para ser um bom profissional? Você tem algum conselho (ou mais de um) para quem está começando a carreira agora? Apenas ter conhecimento fluente da língua que pretende traduzir basta ou é preciso ser, também, um bom leitor ― leia-se ter bagagem literária?

A principal qualidade do bom tradutor, a meu ver, não é saber "falar a língua" (ou a marinha mercante estaria cheia de tradutores...), mas dominar o próprio idioma, em todos os níveis discursivos. Quem não lê não pode aspirar a escrever. E também não adianta ler Paulo Coelho, Crepúsculo, Harry Potter, O Código Da Vinci e todo esse fast-food obscurantista tão em voga por aí. A leitura precisa ser de alto nível.

Mas é tão possível ensinar a ler quanto ensinar a escrever. Ou seja, não é: essas coisas não se ensinam, só se aprendem.

Claro que ajuda também o grau de desenvoltura que ele mostra no entendimento da língua que vai traduzir, em qualquer registro: culto, coloquial, formal, técnico etc. Mas ninguém sabe tudo, e o tradutor não pode ter preguiça de ir atrás. O pior pecado é achar que entendeu ou acochambrar, dar um jeitinho na tradução.

O tradutor iniciante que é um leitor ávido de boa literatura, consumidor de informação, esponja de cultura pode tirar grande proveito de comparações entre originais e traduções, observando as soluções encontradas por outros tradutores (assim como seus erros, também). É o único aprendizado "específico" que me ocorre.

Já sobre a parte financeira, bom, essa é melhor nem falar, pra não desestimular...

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 18/8/2009

 

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