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Segunda-feira, 24/8/2009
Da relevância e do respeito musical
Rodrigo Cavalcanti da Rocha

O que faz uma banda se tornar realmente grande? Ok, ela vender muitos discos ou lotar shows por um grande período de tempo são critérios interessantes ― mas que só podem ser medidos depois da obra pronta. A questão que nos interessa aqui é como uma banda se torna artisticamente relevante, ícone de seu tempo. Pensando nas duas últimas bandas de rock realmente grandes, que extrapolaram a (hoje em dia imensa) fronteira do termo "rock" e atingiram um público muito maior, temos uma pista. Goste ou não do som, trata-se de U2 e Metallica. Você pode até pensar em Pearl Jam, mas nunca foram excepcionais vendedores de disco. Você pode pensar no Nirvana, mas não tiveram nem tempo de se estabilizar. Você pode pensar em Oasis ou até mesmo em Coldplay (e eu discordaria de você), mas são bandas que não atingiram um patamar realmente gigantesco (se o Oasis já atingiu, foi nos anos 90 e não manteve, o que coloca os Gallagher fora do nosso campo de análise).

Mas volto. Artisticamente, quais os caminhos que uma banda pode fazer para ir além de seu gueto musical? Adotando o U2 e o Metallica como exemplo, só me resta a palavra "reinventar". Arriscar, em nome da liberdade artística, da inquietação que só os grandes nomes têm. Guinadas radicais na carreira. E, curiosamente, a grande guinada para as duas bandas veio em 1991, respectivamente com os discos Achtung Baby e Metallica (ou Black Album). São sonoridades diferentes entre si, tanto quanto U2 e Metallica são diferentes, claro. Mas estes discos representaram uma virada bem-sucedida tanto economicamente (venderam pra caramba) quanto artisticamente (ganharam respeito pela coragem e ousadia). E um fator ainda une mais estes discos e artistas: deixaram os seguidores mais fanáticos de cabelo em pé, aos gritos de "traidores", "vendidos" e afins. Estes mesmos fãs que, hoje, numa discussão, podem muito bem apontar estes discos como dado inconteste da importância das bandas na história da música popular do último século. O que indica que estas bandas passaram com louvor no chamado "teste do tempo". Que é, no fim das contas, o que indica se o artista ou sua obra podem ser realmente considerados clássicos.

Vamos ao U2. Os álbuns imediatamente anteriores, The unforgettable fire, The Joshua Tree e Rattle and Hum, venderam muito, tiveram muitas músicas tocadas ad nauseum. Os dois discos continham aqueles "hinos de uma geração". Não se lembra? Então lá vai: "Pride (in the name of love)", "I still haven't found what i'm looking for", "Where the streets have no name", "With or without you", "Angel of Harlem", "Desire", fora outros sons, de discos anteriores, tão (ou mais) tocados quanto. Ou seja, uma banda alçada à condição de grande, máquina de hits radiofônicos desde a estreia, em 1980. Os irlandeses poderiam lançar mais do mesmo e colher os frutos até a fórmula se esgotar. Mas não: viraram totalmente, modernizaram o som, botaram batidas dançantes onde havia um rock duro, de raiz, conservador até ― são irlandeses, lembre-se disso. O "Messias do rock", como Bono era chamado inclusive pela imprensa (?), zombou de si mesmo, se maquiou, assumiu outras personas (The Fly, Mr MacFisto, Mirror Ball Man) e foi à luta. Ninguém entendeu, os xiitas ficaram com raiva... e o U2 nunca mais foi o mesmo. O disco já começa incomodando os puristas com Zoo Station, uma mixagem muito diferente do que o U2 havia feito. Emenda com "Even better then the real thing", no título e no primeiro verso ("me dê mais uma chance e você estará satisfeito") praticamente um recado aos fãs. O single foi "The Fly", outra música totalmente fora do padrão U2. Eles saíram da zona de conforto, arriscaram, ousaram ― mesmo ao vivo. A Zoo TV Tour mudou o conceito de shows. Palco móvel, telões de altíssima definição. Bono ligando para a Casa Branca durante os shows. Caracterizações, jogo de luz, maquiagem, tudo para o entretenimento, ainda que a mensagem continue ("One"), confunda ("The Fly") ou apenas sugira. E o U2 passou ao status de banda mítica. Produziram discos bons, regulares, voltaram ao rock básico (no bom All that you can't leave behind), cruzaram o mundo com palcos gigantes... e ainda são e serão relevantes.

E o Metallica? Ícone maior do rock de garagem, trash metal até a medula ("Fade to black" a parte), bebedeiras, calças e camisas rasgadas e velhas, atitude punk. Contra o sistema. A banda mais íntegra do metal, a que se negava a fazer vídeos ― e quando fizeram foi no quarto álbum, de "One", com a banda tocando, em preto e branco, sem concessão alguma. Essa mesma "One" e a tour do disco ... And justice for all já tinham levado o Metallica para um patamar muito superior a qualquer outra banda similar. Mas quando veio a notícia que o produtor do (glam, hard) Motley Crue, de nome "Bob Rock", havia sido recrutado para o quinto álbum da banda, ninguém entendeu nada. E quando saíam notícias da gravação, parecia um disco do Emerson, Lake and Palmer, ou do Pink Floyd. Quase um ano no estúdio. Oito meses até achar o som ideal da bateria. Guitarras gravadas em camadas, várias ― algumas com seis guitarras. Baladas, no plural. Canções mais curtas, mais refrões. Pré-lançamento do álbum e do single. E então veio "Enter Sandman". Maravilhosa, mas diferente de tudo o que fora feito antes. Curta, com imenso apelo comercial, um riff absolutamente incrível ― mas nada de trash metal. O Metallica renegou sua origem? Cuspiu no prato em que comeu? Baladas (lindas, as duas), lados B orquestrados, cover do Queen (a foderosa "Stone cold crazy"). Correram o mundo numa turnê gigantesca, quase tão ousada quanto a do U2 (nem tanto porque, afinal, eles eram muito mais sérios que Bono e companhia). Questionaram a própria sanidade (impossível não citar a declaração do baterista Lars Ulrich, no México, em 1993: "será que o Metallica virou atração de circo?"). E eles gravaram um clipe com um diretor badalado. E outro. E outro. Foram indicados ao Grammy. E entraram pra história. "Enter Sandman" ainda é presença obrigatória nos shows ― e berrada por gerações de fãs, nos shows, em festas ou bares. Seus lançamentos ainda recebem aquele "parem as máquinas". E, a julgar pelo mais recente disco (o ótimo Death Magnetic), os caras ainda têm lenha de sobra para queimar.

Enfim, goste ou não das bandas citadas, não se pode fugir dos fatos. E estas bandas, a partir destes discos, atingiram um nível que pouquíssimas bandas no mundo podem se gabar. Mais importante: ainda são mundialmente relevantes, dezoito anos depois, fora de seu universo musical. Algumas bandas perderam oportunidades de atingir este nível e estagnaram (o Iron Maiden é o primeiro exemplo que me vem). Outras atingiram patamar similar justamente por manterem-se fiéis, sem grandes viradas na carreira (veja o AC/DC). Nestes casos, em particular, ambos os artistas atingiram um patamar mítico, em maior ou menor escala. Mas isso é outra conversa, que fica para outro dia.

Nota do Editor
Rodrigo Cavalcanti da Rocha é professor e mantém o blog Seleta de Prosa.

Rodrigo Cavalcanti da Rocha
São José dos Campos, 24/8/2009

 

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