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Quinta-feira, 17/9/2009
Entre as cordas, os contos são contundentes
Vicente Escudero


F.X. Toole

Não me recordo da primeira vez que assisti a uma luta de boxe profissional. A lembrança mais remota que tenho do esporte é a de dois lutadores fora de forma, um deles de calção azul e o outro vestindo branco, lutando num ringue improvisado sob uma tenda de circo. Devia ter meus doze, treze anos, talvez fosse durante as férias na casa dos meus avós numa cidade do interior de São Paulo, ou em algum lugar próximo de onde morava, numa época em que o circo era programa de final de semana e não havia lei proibindo a participação de animais nos espetáculos.

Encerrada a apresentação dos palhaços, eu e alguns colegas espiávamos a próxima atração escondidos debaixo de uma parte desativada da arquibancada suja. O apresentador, falando em um microfone no meio do picadeiro empoeirado, anunciou que haveria um desafio entre dois pesos pesados. Um ringue foi improvisado no meio do picadeiro enquanto a platéia escassa tratava de engolir gominhas e pipoca. Os dois lutadores gordos entraram, cada um por um lado das cordas, retiraram os roupões e se aqueceram enquanto o apresentador anunciava seus cartéis de lutas: nenhum deles jamais havia sido derrotado, e o sujeito usando calção branco ainda era campeão de uma associação repleta de vogais.

Trocamos alguns olhares de espanto após anúncio de que a luta seria repetida na noite seguinte, afinal, se os boxeadores eram invencíveis, qual seria a graça de assistir a mesma luta um dia depois da queda de um deles? "Amanhã tem revanche!", um de nós disse, empolgado com a reprise, desatino só justificável pela infância.

A alegria acabou antes da luta. O segurança percebeu que não compramos entradas e tratou de nos enxotar da tenda. Naquela noite, fomos banidos por indisciplina. Mas conseguimos ouvir o couro das luvas batendo no couro ainda vivo de algum dos lutadores.

No dia seguinte, voltamos ao circo à tarde, durante os preparativos para o espetáculo da noite. Um dos pesos pesados fumava um cigarro, sentado na porta de entrada de um trailer. Naquela tarde, éramos cinco: eu, duas garotas e dois colegas. O segurança passou por nós e fez questão de recordar que era necessário pagar para assistir à luta e que, naquela noite, se tivéssemos dinheiro, poderíamos ver os dois campeões se enfrentarem novamente. Antes que decidíssemos, o lutador desceu de sua casa sobre rodas e ofereceu algumas aulas grátis de boxe para a "molecada que teve a cara-de-pau de entrar no circo sem pagar".

Vesti luvas grandes. Tive a sensação de estar usando uma couraça pesada que retirava toda a sensibilidade das mãos durante os golpes. Aprendemos a disparar jabs, posicionar corretamente as pernas, saltitar e não caminhar durante a luta, além dos fundamentos que diferenciam o boxe de uma briga de rua: lutadores são classificados de acordo com o peso, golpes só são permitidos acima da cintura e os juízes trabalham separando os lutadores que se agarram, durante o clinch. Saímos de lá com os ombros doloridos, trocando socos com fantasmas no caminho de volta para o descanso noturno.

Só depois de muito tempo fui conhecer o boxe profissional. Lá pelos dezesseis anos, quando o mexicano Julio Cesar Chavez vencia todo mundo por nocaute e aumentava seu cartel de vitórias, que chegou à espantosa sequência de 90 lutas sem derrota. Chavez era um lutador inteligente, sabia domar seus adversários ainda que fossem mais fortes, mais rápidos ou mais resistentes ― enfim, melhores do que ele. Tinha a agilidade de um lêmure, a resistência de um lobo e um cruzado de direita tão forte quanto a patada de um leão. Foi, para os estatísticos da arte de socar, o maior pugilista de todos os tempos. Considero sua luta mais espetacular a defesa do título contra o norte-americano Meldrick Taylor, derrotado no décimo segundo assalto por nocaute, a dois segundos do fim da luta. Detalhe: Taylor vencia a luta por pontos e, por não conseguir responder às perguntas do juiz quando se levantou depois do golpe fatal, foi declarado o nocaute. O cruzado de direita de Chavez era infalível.



Talvez essa imprevisibilidade do boxe, a dificuldade de se definir o resultado pelo retrospecto dos lutadores, seja a grande atração desse esporte. Impossível definir um vencedor simplesmente por características pessoais como força, treinamento e coragem. A dois segundos do fim da luta, meses de preparo podem ruir por um ombro caído, uma defesa fraca. Ofegantes, os lutadores se engalfinham até o desgaste quase fatal, ou até serem interrompidos pelo juiz encerrando a luta, impedindo o fim da carreira de um dos lutadores. Se um deles é nocauteado e levanta rapidamente, num espasmo animal de força e garra, como fez Meldrick Taylor, de nada adianta se a consciência foi jogada para fora do ringue por um golpe certeiro do adversário, capaz de fazê-lo esquecer o próprio nome.

Apenas um lutador impôs a matemática entre as cordas: Myke Tyson. Até o dia em que foi derrubado por James "Buster" Douglas e, posteriormente, por Evander Holyfield. Enquanto estava em forma e fora da cadeia, Tyson foi imbatível. Depois de cumprir pena por estupro, não tinha mais a condição física e psicológica que intimidava e derrubava os rivais no primeiro assalto. Tyson não demorava mais de três assaltos para terminar o serviço. Não trabalhava as pernas muito bem, respirava o suficiente para distribuir dois ou três golpes fatais. Aquele som de "freada de caminhão", feito pelos lutadores quando respiram durante um golpe poderoso não fazia parte de seu repertório. Foi derrotado pela falta de preparo físico.



Fora das arenas o boxe sempre foi mostrado como tragédia e redenção: a luta entre dois homens que arriscam tudo dentro e fora do ringue para ganhar respeito, provar que são mais durões que o oponente. O cinema tratou disso desde Sindicato de ladrões, a história trágica e redentora de Terry Malloy (Marlon Brando), boxeador aliciado pela máfia do sindicato de estivadores, que luta para acabar com a influência do grupo criminoso sobre a população da cidade e sobre o sindicato; passando por Touro indomável, com Robert De Niro no papel do boxeador Jake LaMotta do seu auge à decadência; até Menina de Ouro, a história de Maggie Fitzgerald (Hillary Swank), boxeadora tardia que se torna campeã mundial, mas acaba sofrendo um acidente que a torna paraplégica, fato que coloca seu treinador, Frankie Dunn (Clint Eastwood) entre a cruz e a espada para decidir sobre a prática de eutanásia.

Baseado nas histórias do escritor ― até então desconhecido ― F.X. Toole, Clint Eastwood filmou um drama muito além das cordas, retratando a condição humana quando colocada em situações extremas: o físico combatendo a transitoriedade da vida, o carinho pela lutadora em clinch com os dogmas cristãos. A vida de Maggie Fitzgerald sendo golpeada diariamente pelo tempo não difere das sequências de jabs e ganchos trocadas no ringue, enquanto a dúvida sobre sua tenacidade e coragem vai assumindo ares de redenção, até a transformação em tragédia na luta pelo título.

Maggie e Frankie são personagens extraídos do cotidiano das academias de boxe, da vida dupla levada por F.X. Toole, enquanto conhecido por Jerry Boyd no canto dos ringues. Pouco se conhece sobre a vida deste escritor que se tornou um sucesso tardio. Toreador, boxeador a partir dos quarenta anos de idade e mais tarde cutman (responsável pela contenção dos sangramentos do lutador durante a luta), Jerry Boyd adotou o pseudônimo para esconder dos parceiros de boxe a vida de escritor. Como num golpe de sorte, passou mais de quarenta anos enviando originais e sendo recusado por editoras, a partir da década de cinquenta e, por acaso, aos setenta anos de idade, foi descoberto por uma pequena revista literária de São Francisco. Morreu antes de ver nas telas a personagem que criou, embora tenha lutado para que o enredo não fosse mudado. Venceu, embora não tenha visto a glória. Deixou um romance de quase mil páginas inacabado, encerrado pelos filhos e um restaurador, publicado em 2007, chamado Pound by Pound, ainda não traduzido para o português.

F.X. Toole viveu as lutas que escreveu. Ainda que não tenha alcançado em vida o reconhecimento literário, foi capaz de produzir uma pequena obra-prima, As cordas queimam, coletânea de contos ao estilo de Hemingway, onde só o essencial basta e os ossos, músculos e sangue batalham contra as adversidades com o mesmo vigor de um peso pesado na luta pelo título. Com apenas cinco contos, ficou acima dos frufrus de Norman Mailer e a inocência de Jack London no tratamento do boxe.

Um dos poucos registros do autor, na internet, é esta entrevista. Nela, o escritor recém-descoberto se mostra ansioso, um contador de histórias nato à espera da primeira oportunidade para narrar os episódios que permeiam a doce ciência do boxe. No final dessa luta com a literatura, o resultado foi o seguinte: viveu muito, escreveu pouco, bateu forte. Seguindo Muhammad Ali, teve a chance de voar como uma borboleta e picar como uma abelha. Na literatura e como cutman, foi preciso como uma navalha.

Vicente Escudero
São Paulo, 17/9/2009

 

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