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Sexta-feira, 18/9/2009
Das coisas que você detesta
Ana Elisa Ribeiro

Meu pai fazia cara ruim quando a gente dizia que "detesto isso". Ele achava antipático. Ou achava pecado, sei lá, embora não fosse nada católico. O fato é que a gente detesta certas coisas, das grandes e das pequenas, e, às vezes, nem sabe por quê.

Detesto quando um pseudocidadão demonstra uma incrível falta de percepção de espaços e tempos no trânsito. Sinal acabou de abrir, está lá o energúmeno buzinando; trânsito lento e engarrafado, está um gêmeo dele piscando farol; avenidas quase paradas, cheias de carros e ônibus, lá vai o estrupício encostando na traseira de todo mundo. Às vezes, me vem uma gana esquisita e eu torço para que algo dê bem errado para ele. Meu pai acha isso feio, mas o que é que a gente vai fazer? Dá vontade de ver o imbecil bater os parachoques numa Land Rover bem cara. Em geral, o pulha vai num carro bem meia boca, não sei por quê: Unos em geral, carros populares ou automóveis possantes mais antigos. Donos de camionetes também costumam demonstrar um comportamente meio engraçado no trânsito, talvez por conta de uma sensação de grandeza que não podem ter na vida em dois pés ou que não têm no convívio real com pessoas.

Coisa detestável, das grandes, é quando alguém se gaba demais. Dá uma impaciência danada em quem ouve a lorota. Na academia, há uma síndrome do recém-aprovado, em geral nos mestrandos, que assume uma postura de quem vai realizar o mais inédito e genial projeto de investigação do mundo. "Ninguém fez isto antes, só eu tive esta ideia". Poxa, que bom, hein? Pena que quase nunca é verdade. Quando a coisa se revela, não passa mesmo de falta de leitura. Nada que uma revisão bibliográfica não resolva.

Nos congressos de Humanas/Sociais Aplicadas/Letras e Artes há um surto de relatos de pesquisa de algo que não foi pesquisado ou que não explicita qualquer método de geração de dados ou que não passa de uma descrição impressionista de eventos que poderiam ser narrados pelos nossos filhos de 5 anos. No que se convencionou chamar de Cibercultura, então, a futurologia impera, quando não o relato de trabalhos que foram feitos não apenas sobre pressupostos estranhos, mas sobre as preferências anteriores dos próprios "pesquisadores".

Das coisas pequenas é bem mais fácil falar. Elas são capilares (em vários sentidos) e soam familiares para a maioria de nós. Aqueles fios de cabelo enrolados no ralinho da pia; aquela baba misturada com pasta de dente endurecida na louça; aqueles pelos enroscadinhos no sabonete novo (fios de outrem, claro); aquele cheiro de cigarro que fica no cabelo da gente ou nas roupas recém-tiradas do armário; aquele barulhinho irritante de suco caindo no copo; ou aquele glunt-glunt da bebida descendo na garganta de alguém; aquela galera falando língua estrangeira ou algum jargão numa festa que era pra ser amigável e divertida; aquela aluna que se penteia e maquia durante a aula; aquela outra que joga fios de cabelo pelo ar; e ainda outra que mexe nas madeixas o tempo todo; aquele aluno que coça o saco o tempo todo, sem se importar com nada, muito embora isso se pareça muito mais um reflexo meio canino para alguns machos; ou aquele que entra na sala atrasadíssimo e faz questão de cumprimentar todos os colegas com efusivos toques de mão; ou ainda aquele aluno que tem notas péssimas e vem sempre com uma história trágica para contar, na tentativa de se safar da aferição de sua incompetência; aquela pessoa para quem tudo o que ela faz, é, sente ou de que gosta é melhor do que o dos outros; ou aquela que vive se fazendo de vítima.

Das miudezas, impressionante como, quando a gente está tenso, uma esbarradinha qualquer pode se transformar num grave acidente. Como a palavra errada, na hora errada, parece o tônico da desavença. Falta de sensibilidade ou o quê? Ex-namorado que se deu bem dá uma raiva-monstro (isso vale para os vice-versas). Certa vez, ouvi de um jovem esclarecido que eu não arranjaria nada melhor do que ele. Fiquei com medo. Vai saber? E o medo de ebó? Não conta?

Aquele beijo estalado dentro do ouvido; aquela lambidinha babona na orelha; aquela cosquinha engraçadinha quando alguém chega por trás. Se você usa óculos ou lente de contato pode entender, perfeitamente, o que significa aquela tapadinha de olhos tipo "adivinha quem é?". Dá um trabalhão limpar a gordura dos dedos nas lentes dos óculos. Dá trabalho e dói devolver as lentes de contato (rígidas) para a frente dos olhos.

Livro rasgado, amassado e cheio de orelhas? Já emprestou algum que voltou assim? Se não sabe o que é isso é porque lhe faltam livros, hein. Emprestar livros é um risco enorme. Ao menos para quem se importa com eles.

Lidar com a bagunça dos filhos dos outros é sempre insuportável. Quando os pais são conhecidos ou estão por perto, fica sem graça a gente xingar. Os nossos filhos são sempre umas graças, a bagunça deles é sinal de inteligência. Que coisa. Na Física, já diziam: tudo depende do referencial.

Coisas detestáveis existem aos montes, inclusive das que a gente experimenta com as pessoas de que gostamos. Aquela beliscadinha na bochecha, depois que a gente está mais velho, fica tão ridícula, não é? Aquela história que alguém conta pela milésima vez, e que não tem mais a menor graça. Ou aquela pessoa querida que come com a boca aberta. Minha irmã detesta ficar perto de quem masca chiclé. Jeito lhama? Não interessa. Detesto cheiro de cerveja. Não raro alguém derrama ou pinga cerveja em mim, justo em mim. Será que a gente atrai? Alguma mulher aí acha bonito sentar no xixi de macho que não levanta a tampa do vaso sanitário? Mulheres míopes sabem bem do que estou falando. E os homens? Algum relato interessante sobre as práticas femininas mais detestáveis?

Detestar assim é sentir uma grande irritação diante de um evento que, no fundo, tem nenhum ou quase nenhum significado. As coisas que a gente detesta permanentemente são uma outra história.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 18/9/2009

 

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