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Segunda-feira, 21/9/2009
Romances do Futuro e Homens do Passado
Guilherme Diniz

Romances distópicos deixam-me enfastiadiço. Não entendo ao certo a razão de se imaginar o futuro como algo precário, turvo, nebuloso e pessimista. Sempre nutri preferência pelas utopias; se for para haver barbarização de uma ou outra proposta, qual a razão de se preferir a privação e miséria em detrimento do gozo e da ventura? Mas a opinião em favor dessa perspectiva é minoritária. Se juntarmos os nomes de autores utópicos provavelmente não encontraremos mais que uma dezena.

Por outro lado, se reunirmos escritores cujas obras pontuaram-se pelo caráter marcadamente derrotista, seríamos bem capazes de preencher tranquilamente uma folha de papel. Inevitavelmente teríamos que citar nomes como os de George Orwell (1984), Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), H. G. Wells (The Sleeper Awakes), Mary Shelley (O Último Homem), Karel Čapek (R.U.R.), Sinclair Lewis (It can't happen here), Yevgeny Zamyatin (We), Karin Boye (Kalocain), Anthony Burgess (Laranja Mecânica). E o motivo para isso, creio, parece concentrar-se numa palavra a faltar na visão pessimista: obstinação.

Sobre ela, Hermann Hesse (vide Sobre a Guerra e a Paz) nos contava ser a única virtude que verdadeiramente corresponde à natureza dos sonhos e da liberdade. As outras virtudes, para ele, caminham sempre para a obediência daquilo que homens de outros tempos nos prescreveram como certo e digno de respeito. A obstinação também é uma virtude, mas a ela se vincula outra espécie de dever, significadamente mais sagrado: seguir sua própria lei, "o sentido de si mesmo".

Se escolhermos três autores cujas obras se pontuaram pelo motivo da tenacidade, veremos que o destino a ser alcançado não poderia ser outro que não o de imaginar o impossível: William Morris, Henry David Thoreau e Percy Shelley. O primeiro, em Notícias de lugar nenhum, imaginou no ano de 2102 uma Inglaterra povoada por homens que fossem capazes de desenvolver atividades laborais e artísticas realmente dignas para a formação humana, onde tudo aquilo que fosse desnecessário para alcançar esse objetivo estaria de todo abolido e o tédio do trabalho e os seus inconvenientes estariam completamente proscritos.

Enfim, todos se veriam livres e não opressos a viver num mundo onde a desigualdade e injustiça fossem inexistentes e desconhecidas, cercados unicamente por uma sociedade assentada numa nova ética, valores, belezas, paixões e perspectivas. Não sem razão, nossa civilização ― a cultura dos séculos XIX, XX e, por que não, do século XXI ― foi assim descrita pelo seu autor: "Parece então, meu filho, que o governo dos tribunais e da polícia, que era o governo real do século XX, não era uma sucesso nem mesmo para o povo da época, que vivia sob um sistema de classes que proclamava serem igualdade e pobreza a lei de Deus e a força que mantinha o mundo unido".

Por outro lado, Thoreau constrói sua utopia em meio ao universo natural, na relação entre homem e natureza, com lagos, bosques, florestas e montanhas. Diferentemente de William Morris, seu projeto cresce na negação daquilo que o autor inglês usava como justificava à sua teoria de sociedade. Se ele pensou que as máquinas não deveriam ser superiores aos interesses humanos, Thoreau fez o caminho inverso, negando qualquer valor utilitário seu no aperfeiçoamento humano. Como ele escreveu no ensaio "Vida sem Princípio", vivemos num mundo que "é um império de negócios", e que disso não brotará nada excepcional.

O verdadeiro homem ― e seus valores correspondentes ― somente poderá ser encontrado quando ele se colocar diante das mais adversas e selvagens condições. Em Walden, obra onde ele descreve os dois anos em que passou a viver nos bosques localizados à margem do lago Walden (que era propriedade de outro rebelde, Ralph W. Emerson), sua visão para a edificação de uma humanidade sadia se assenta não simplesmente na austeridade e isolamento, mas também na independência e, porque não, na autossuficiência.

Consequentemente, como ele mesmo ressalta no ensaio "Caminhando" ("Walking"), isso poderia produzir alguma aspereza de vigor e caráter, fazendo "crescer uma cutícula um pouco mais grossa sobre algumas das qualidades mais delicadas de nossa natureza". Mas ao contrário do que poderia ser precipitadamente suposto, não há que se falar de Thoreau como um ludista. Ele somente se questiona por uma indagação que subsiste nos dias atuais: o quanto a modernidade aprisiona nossas liberdades sob o véu da praticidade e comodidade. Finalmente, Shelley. Esse eu amo sinceramente, sem medo, sem restrições. Como não se apaixonar por alguém que diz: "There is no real wealth but the labour of man. Were the mountains of gold and the valleys of silver, the world would not be one grain of corn the richer; no one comfort would be added to the human race". (Tradução: "Não existe riqueza que não provenha do trabalho humano, mesmo onde existam montanhas de ouro e vales de prata. Sem ele, esse mundo não seria um grão de milho mais rico e nenhum conforto seria incorporado à raça humana".)

No seu poema "Queen Mab" ele ataca apaixonadamente as principais causas da desigualdade e injustiça: a monarquia, religião, comércio, guerra; e ainda sobra espaço para defender de forma coerente o amor livre. Toda hierarquia social, o casamento, dinheiro e egoísmo são identificados por Shelley como raízes da alienação e pessimismo humanos (o mesmo se sucede nos poemas "Alastor" e "The Revolt of Islam"). E não seria inusitado se nós conseguíssemos chegar noutra consideração: hoje, submersos na ética de mercado, não seria interessante o resgate da proposta humanista de Percy Shelley?

De qualquer modo, talvez vejamos neste relacionamento entre a fortuna e a utopia o que de mais substancial há que ser produzido ― o despertar da capacidade humana em pensar e romper com a aparência de correto e justo daquilo que existe. Utopias não existem tanto para serem construídas do modo como as imaginamos. Servem muito mais para nos fazer dizer que algo está errado e que isso deve ser transformado. Porque, em última instância, todo e qualquer utopismo se resume àquela ideia que tão bem Dylan Thomas escreveu: "Ó tu que és glória dos mapas informes,/ Cria agora o mundo a partir de mim como tenho criado/ De teu orbe ambulante a ditosa imagem dos homens".

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado em seu blog, o rinoceronte voador.

Guilherme Diniz
Belo Horizonte, 21/9/2009

 

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