busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Terça-feira, 22/9/2009
A poética anárquica de Paulo Leminski
Jardel Dias Cavalcanti

"De Jesus, contam os evangelhos que, quando a polícia romana irrompia em algum sermão da montanha, revistando e prendendo todo mundo pelo porte do livro de Moisés, o divino mestre sempre gritava:

― Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra.

O pau comia e a cana era dura. Mas a frase ficava".

Este texto meio malandro revela muito do que foi Paulo Leminski: mescla de poeta, tradutor, judoca, ex-monge beneditino/zen, boêmio, compositor e pesquisador dos poetas andarilhos japoneses. Embriagado por tudo que o tocava, não era diferente quando se dispunha a pensar teoricamente.

Amigo dos concretos paulistas, Leminski aprendeu a teorizar sobre seu ofício de poeta, não como um acadêmico, mas como a besta dos pinherais (como se autodenominava). Vociferava suas ideias com inteligência, radicalidade e a mais intrigante visceralidade. De poeta de gabinete... nunca teve nada.

Conseguia equilibrar o rigor do pensamento nos moldes do trio concreto paulista com a alegria anárquica dos tropicalistas. E dessa conjunção aparentemente dissonante é que nasciam as reflexões estéticas de Paulo Leminski.

Haroldo de Campos comenta essa característica numa entrevista dada a mim, em 1990, e publicada na revista Sibila, número 5, de 2003: "Nós tínhamos o caso do Leminski, que era uma pessoa que tinha uma vida bastante marginal, no sentido de que ele era uma personalidade meio hippie, era uma pessoa que nunca trabalhou regularmente, que vivia de atividades freelance aqui e ali. E, no entanto, ele tinha uma grande competência. Ele tinha sido seminarista, sabia grego, latim, hebraico, conhecia várias línguas, inclusive o eslavo. No seu trabalho com música popular, ele aliava essa capacidade vital com a competência técnica. Quer dizer, ele era um fabro. O Leminski é um exemplo de como uma pessoa pode conciliar a atitude vital com a competência".

Na contracorrente da arte esquerdista-engajada, para o poeta curitibano a poesia é um ato criador que não precisa de justificativa nenhuma e nenhuma razão de ser. "Eu acho que a poesia é um inutensílio. A única razão de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa porque elas são a própria razão de ser da vida. Querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja a serviço de alguma coisa é a mesma coisa que querer que um gol do Zico tenha uma razão de ser além da alegria da multidão. É a mesma coisa que querer, por exemplo, que o orgasmo tenha um porquê. É a mesma coisa que querer que a alegria da amizade e do afeto tenha um porquê. Eu acho que a poesia faz parte daquelas coisas que não precisam ter um porquê. Para que porquê?"

Para Leminski, o poeta não se define pelos conteúdos que ele veicula. Quem veicula conteúdos são os jornalistas, os teóricos, os professores universitários. O poeta se define pela capacidade de criar beleza com a linguagem.

Na mesma direção vai o pensamento de Haroldo de Campos que, quando da entrevista acima citada lhe questionei sobre a poesia engajada, prontamente argumentou que "fazer um discurso, uma coisa caricata e imaginar que com isso fez poesia é um equívoco. Aliás, o grande equívoco dos poetas participantes é que eles não têm noção da importância da forma. Como dizia Maiakovski, para fazer uma arte revolucionária é preciso uma forma revolucionária. É mais interessante escrever um bom artigo num jornal em defesa de uma causa justa do que um mau poema equivocadamente dedicado a essa causa. A poesia enquanto participante deve ser extremamente exigente e juntar essa participação com o efeito criativo no nível das formas significantes".

O que há de revolucionário na poesia é sua inutilidade, "brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do lucro". A poesia obedece a uma ordem do gasto, segundo o poeta, da dilapidação, do excesso. "Ninguém quer gozar de mansinho só para poupar sêmem".

No seu texto quase manifesto, denominado "Inutensílio", Leminski ataca essa pragmática do valor em sua origem: "A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil. Tudo tem que ter um para quê... O pragmatismo de empresários, vendedores e compradores mete preço em cima de tudo. Porque tudo tem que dar lucro. A ditadura da utilidade é unha e carne com o lucrocentrismo de toda essa civilização. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro. Vida é dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a bomba de nêutrons ou o vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza".

Para Leminski a poesia é o princípio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer. Precisam do princípio da realidade que doutrina códigos fechados, que não se renovam e têm uma espécie de temor da vida, pois esta, também na linguagem, exige que sempre o novo surja.

Nas palavras de Leminski, o novo é sempre visto como ameaça. "A história mostra como as sociedades se defendem de toda novidade. Porque as classes dominantes veem na estabilidade das formas uma espécie de emblema de seu poder. A experimentação das formas é algo maldito e visto como anti-social. E estão certos, realmente. A inovação é anti-social porque propõe uma nova sociedade".

A poesia, perigosa desde Platão, nunca deixou o estigma de "coisa estranha", do reino do irracional e da imaginação descontrolada. Segundo Leminski, "a poesia é movimento da linguagem em direção ao desconhecido. Um poeta não se faz com versos. O poeta é movimento. E todo ser em movimento é perigoso. Todo ser que se transforma incomoda. O poeta em movimento flagra o lado patético de nossas verdades absolutas, o belo que se esconde naquilo que tememos".

A poesia, no entanto, nunca deixou de existir. Sempre, a cada geração, seja na forma de leitores ou criadores, ela se conserva, se renova. E para o poeta "tem que existir poesia tanto no receptor quanto no emissor. Você precisa ser tão poeta para entender um poema quanto para fazê-lo".

Esse apego do homem à linguagem poética tem uma explicação para Leminski: paixão pela palavra, paixão pela linguagem. "O prazer da linguagem é um dos prazeres humanos maiores, junto com o sexo, a bebida, a comida, estados alterados pela droga... o uso da linguagem dá um barato."

Lugar frequentando por uma minoria, segundo nosso poeta a vocação da poesia é uma espécie de heroísmo. "Você continuar ao longo dos anos nessa coisa inútil que é a pura beleza da linguagem, que é a poesia, é um heroísmo. É uma modalidade quase que, às vezes eu gostaria de acreditar, de santidade". Leminski explica a marginalização do poeta, na palestra "Poesia: paixão da linguagem", dizendo que a poesia não dá nada para o poeta. Ao contrário, ele chega a desconfiar de que o poeta é um ser com alguma disfunção genética. Um ser com falha no seu planejamento e, sendo dotado do erro, seria vítima de uma tradição que o marginaliza e persegue como se fosse bandido.

Em caprichos e relaxos Leminski define sua poesia nos termos seguintes: "minha poesia aventureira tem um passado de freira e de puta". Segundo Toni Hara, "com essas imagens antagônicas Leminski definia sua formação intelectual. O passado de freira está ligado aos estudos realizados no mosteiro, a descoberta da grandeza mínima do haikai e ligado também ao seu engajamento no movimento concretista, liderado por Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, que iniciaram Leminski no repertório das vanguardas do século XX. Por outro lado, a fase puta tem a ver com a vida boêmia, o rock nas veias, as experiências lisérgicas, a tropicália e com a subversão da contracultura. O conflito, ou talvez a soma do gasto com o devasso, com os caprichos e relaxos é que torna a obra de Leminski peculiar, original, ou, como ele diz, algo entre o óbvio e o nunca visto".

Para ser entendido por todo mundo o poeta buscava na linguagem pop uma forma de comunicação mais direta. Ele detestava aquele tipo de poesia profunda que obrigava os leitores a correrem atrás do dicionário. "O resultado deve ser raro, dizia, mas os ingredientes têm que ser simples".

Quando Caetano gravou "Verdura", em 1981, no disco Outras Palavras, a poesia de Leminski parece que estava caminhando para ser aquilo que Oswald de Andrade sonhava: um biscoito fino que a massa poderia provar. Numa carta endereçada ao poeta mineiro Carlos Ávila, ele disse: "A minha poesia está vivendo uma aventura de massa. Eu e minha poesia fomos despejados do palácio das letras".

O Rimbaud de Curitiba sabia que a poesia é o lugar da liberdade, sonho máximo do homem. E o homem é livre na poesia porque "o eu do poema é suscetível de todos os disfarces, de todas as fantasias, de todas as máscaras. O poeta pode fingir ser o que bem entender". Como o silêncio da música de Webern, a poesia é "o silêncio elipse/ o silêncio substantivo/ o silêncio pleno de som". Leminski é um remanescente daquele grito de Rimbaud que exigia da vida que ela fosse também arte.

Ele sabia que "poesia a gente encontra em toda parte", mas para vê-la é necessário, antes, ser poeta.

Nota do Autor
Para quem quer ter um contato direto com essas reflexões, a Rádio UEL FM (Londrina) fez um programa, dividido em cinco partes, dedicado a Leminski, onde se pode ouvir suas falas sobre poesia, ouvir suas músicas cantadas por Itamar Assunção, Zelia Duncan, Caetano Veloso e poemas recitados por Arnaldo Antunes, dentre outros. Há também uma raridade, que é Leminski cantando ao violão acompanhado pela bateria do músico Kito Pereira (dono da gravação feita em curitiba nos anos 80).

Para ir além
"Eternamente marginal".

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 22/9/2009

 

busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês