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Sexta-feira, 2/10/2009
Lendo Dom Quixote
Julio Daio Borges


Dom Quixote por Picasso

* Os clássicos são aqueles livros que fazem a gente esperar "um momento mais adequado" na vida para ler. Pode ser uma época mais tranquila, uma idade mais madura, um momento, enfim, em que a "luta pela vida" (uma constante na fase adulta) nos dê uma trégua. Mas, talvez, esse momento não exista. E ― numa época fragmentária como a nossa ― talvez estejamos condenados a intervalos que mal conseguimos preservar (em meio ao caos). Na verdade, não considero minha vida um "caos" (e, se fosse, a culpa seria minha), mas confesso que alguns livros simplesmente não consigo abrir em "dias normais" ― quanto mais penetrar no seu ritmo, na sua história, na sua profundidade. É, eu já escrevi sobre isso, mas, como introdução a este texto, achei que valeria a pena retomar...

* Apesar de tudo isso, de uns tempos pra cá, eu decidi montar uma modesta "programação de leitura" de clássicos (para mim mesmo), porque achei que havia "chegado a hora". Como eu tenho dito ultimamente (a amigos): quando você passa dos 30, e descobre que a vida não é mais infinita, tem de se programar, em algumas questões ― afinal, você só vai viver mais o mesmo tempo, de novo (até os 60 anos), ou o dobro, com sorte (até os 90 anos). (Fique tranquilo, porque não vou falar aqui de previdência privada.) Minha lista, se você quer saber, inclui aquelas obras-primas que eu comprei, sempre quis ler e deixei "para depois". Inclui, também, autores cujas obras completas eu gostaria de ler, e ainda não terminei (por "n" motivos). Sim, você acertou: é uma lista para preencher lacunas. Porque a nossa formação é bastante falha (não estou apontando, veja bem, o dedo para ninguém)...

* Para você ter uma ideia do que estou falando, estou lendo o Dom Quixote desde o meio do ano passado e só, agora, terminei a primeira parte (pouco mais de 500 páginas). No ano passado, tirei umas "miniférias" e decidi levá-lo, porque a bela edição do quarto centenário (o Dom Quixote é de 1605), da Real Academia Española, me chamava. Passei os primeiros dias, numa pousada perto de Paraty, tentando mergulhar no livro, como mergulhei na Montanha Mágica (do qual li umas 400 páginas na primeira semana), como mergulhei em Cem Anos de Solidão (o qual li inteiro em uma semana) ― mas, com o Dom Quixote, não funcionou bem assim... Nem poderia ser, na verdade, porque a leitura de clássicos não deve ser uma "corrida"... Ainda mais, contra o tempo. Deve ser, justamente, uma maneira de sublimar o tempo.

* Você, provavelmente, deve achar que um livro de 1605, no original espanhol, deva ser intransponível. Não é... Tá, eu não vou convencer você a ler exatamente como Miguel de Cervantes escreveu ― mais todas as atualizações ortográficas de lá pra cá ―, mas posso falar da minha experiência, para estimular você a tentar. É mais fácil do que eu pensava. Quero dizer: não é muito mais difícil que Cem Anos de Solidão (talvez a primeira obra-prima que li no original). OK, o espanhol é quase a minha primeira língua (é a segunda), porque minha mãe é boliviana, eu cresci ouvindo e falando. Mesmo assim, o espanhol de quatro séculos atrás, ou o castelhano, tem muito do português ― e eu me lembrei logo de Os Lusíadas, de Camões, cheio de "misturas" também. (Se você gosta de História, nesse período teve lugar a chamada União Ibérica ― quando Portugal e Espanha estiveram sob o mesmo domínio...)

* Depois, lendo a fortuna crítica, que acompanha o volume, descobri uma coisa muito interessante: Miguel de Cervantes, através do Dom Quixote, ajudou a unificar a língua espanhola, que, naquele momento, estava dispersa, sofrendo interferências de todos os tipos... Algo que deve ter ocorrido com o nosso português também ― graças aos Lusíadas, do Camões (de novo). O interessante, ainda, é que, naquela época, cada autor tinha uma ortografia própria e cabia ao editor, ou "publisher" (muitas aspas aqui), corrigir e publicar adotando a ortografia "oficial". Como bem exemplifica um dos textos do livro: era como se cada pessoa, além de uma caligrafia própria, tivesse uma ortografia própria... (Se vocês reclamam do "internetês" de agora, imaginem a salada em 1600 e pouco.) E, no Dom Quixote de 2005, as formas ainda variam de maneira considerável...!

* Vocês, provavelmente, querem que eu entre logo na história. Hoje, na época do documentário ("cinema verdade"), da "arte imitando a vida", das histórias "verídicas", época em que a ficção, obviamente, não tem o mesmo apelo de antes, todo mundo só quer saber do "enredo", do "argumento", do que se passa, enfim. Nesse ponto, o Dom Quixote me surpreendeu (pelo menos na primeira parte): porque a história do cavaleiro andante (e de Sancho Panza) é apenas "mais uma" entre tantas outras que se conta, à medida que vão "entrando" novos personagens... A parte dos moinhos de vento, por exemplo, é apenas uma "cena" dentro do livro. O grosso da "ação" do volume se concentra numa "venda" (espécie de estalagem), onde vão aportando os personagens, que chegam pelos caminhos e se apresentam, contando, naturalmente, suas histórias...

* Lembrei das As Mil e Uma Noites, que comecei a ler, influenciado por um professor de História, mas que nunca terminei, porque não gostei da tradução... Lembrei, igualmente, dos evangelhos do Novo Testamento, porque ― conforme sugere outro comentador ― o Dom Quixote tem um sabor de "verdade revelada"... Como sempre acontece quando se lê um clássico, você desfruta da maravilhosa sensação de que não há nada melhor para ler naquele momento (do que aquela obra)... Toda a ansiedade que você normalmente sente, no dia a dia, de estar perdendo tempo com coisas sem nenhum valor, de repente, passa... Lembrei, ainda, dos Diálogos de Platão, porque o Dom Quixote discute, por exemplo, as diferenças entre ser um "homem de letras" e um "homem de armas" (um guerreiro ou um "executivo", hoje); discute, também, o valor das (tão a ele associadas) "novelas de cavalaria"...

* A grande ironia do Dom Quixote é que ele, à primeira vista, soa como uma grande homenagem às mesmas novelas de cavalaria ― aquelas histórias de reis e rainhas, cavaleiros, dragões, princesas, encantos e peripécias impossíveis... O Dom Quixote é um livro moderno ― o primeiro romance, talvez, da história da literatura ―, mas que se reporta à Idade Média (mesmo tendo sido escrito, cronologicamente, no Renascimento). Mal comparando, seria como um livro de hoje que se apropriasse do gênero "autoajuda", com um protagonista que o exaltaria (Dom Quixote passou a vida inteira lendo novelas de cavalaria) ― mas que, pelo cômico de suas ações, revelaria que esse tipo de leitura só expõe o leitor ao ridículo... Um dos comentadores, inclusive, conta que houve várias tentativas "sérias" de acabar com as ditas novelas de cavalaria ― incluindo proibições, censura, queima de livros ―, mas o único herói a lograr tal façanha foi... Dom Quixote! Usando uma arma poderosíssima: o humor.

* Descobri, ainda, que Miguel de Cervantes foi um verdadeiro guerreiro, além de escritor, e que participou de uma batalha importante, dos "cristãos" contra o "mouros", em Lepanto (na Grécia). Descobri, também, que ele esteve preso, durante cinco anos, em Argel (na África), quando seu navio foi capturado, na volta para a Espanha. Depois de quatro tentativas frustradas de fuga, acabou tendo sua "fiança" (?) paga, livrando-se do cativeiro ― e escrevendo, posteriormente, a respeito, num dos últimos episódios da primeira parte do Quixote... Cervantes alcançou a notoriedade só na meia-idade, com essa mesma primeira parte. E o sucesso foi tamanho que ele acabou, em seguida, "pirateado", por uma continuação apócrifa... do seu Quixote ― que talvez o tenha obrigado a escrever sua própria continuação (a tal "segunda parte"). Miguel de Cervantes estava no auge depois dos 60 anos, mas não tinha ideia de que sua obra seria considerada um dos pilares da nossa civilização...

* Um dos comentadores ainda diz que Dom Quixote e Sancho Panza se tornaram mitos para nós ― conhecemos eles como personagens antes mesmo de conhecer a obra em que foram forjados (o que reforça o caráter de "revelação", e a hipótese ― um pouco duvidosa ― de que Cervantes fosse um "gênio inconsciente", uma espécie de médium...). Ao contrário do Fausto, de Goethe, e de muitas obras de Shakespeare, por exemplo, Dom Quixote e Sancho Panza não são lendas coletadas no "imaginário", na cultura popular ou na tradição de um povo ― eles se consolidaram como personagens, e se tornaram mitos, a partir de um único livro.

* Para encerrar, Mario Vargas Llosa afirma que o grande tema do Quixote é, justamente, a força da ficção: ao contaminar ― e, inclusive, transformar ― a realidade. Dom Quixote resolve "sair pelo mundo", depois de praticamente enlouquecer e tendo lido todas as novelas de cavalaria então existentes. É ridicularizado, passa por maluco, é preso e vê suas iniciativas, todas, fracassarem fragorosamente. Mas, na segunda parte do Quixote, quando o nosso cavaleiro andante percorre o resto da Espanha, é reconhecido pelos personagens ― pois muitos, naquela altura, já haviam lido ou ouvido falar de suas "peripécias"... (Sim: num belo exercício de metalinguagem, os personagens da segunda parte, de 1615, haviam lido a primeira parte do livro, de 1605...) Então, Vargas Llosa aponta que: mesmo um néscio, como Sancho Panza, passa a acreditar na lenda do cavaleiro andante, e tenta convencer Dom Quixote, já no seu leito de morte (no final da obra), a retomar sua "causa"... A ficção ― mesmo no seu absurdo ― pode se consolidar, pode vencer e conquistar o mundo... De quantos livros (e de quantos heróis), você pode se lembrar, que tenham realizado tal façanha?

Nota do Editor
Leia também "Dom Quixote, matriz de releituras" e "dulcíssima dulcinéia".

Julio Daio Borges
São Paulo, 2/10/2009

 

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