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Terça-feira, 15/12/2009
História (não só) de livraria
Rafael Rodrigues

De maio a setembro do ano passado trabalhei na livraria que fica no shopping aqui da cidade. Logo nos primeiros meses, apareceu um senhor mal-educado soltando os cachorros em cima de mim e de um outro funcionário, apenas porque, quando ele perguntou se poderíamos abrir um livro, que estava lacrado, para ele, dissemos que geralmente não podemos abrir, mas "iríamos ver".

Era um dos exemplares da coletânea do Pasquim. Mantínhamos lacrado ― e é assim até hoje ― por duas razões: uma é que a maioria dos clientes é meio grossa mesmo; tem gente que não sabe nem abrir e folhear um livro direito: abre o livro todo (em ângulo de 180 graus), mela o dedo na língua pra virar as páginas, machuca as páginas, enfim. Como esses livros do Pasquim são caros, é bom preservá-los, porque pra um indivíduo danificar ou sujar o livro com os dedos melados de gordura é daqui prali. A outra razão é que, geralmente, quem pede para abrir os livros não os compra. E aí o trabalho de abrir e, depois, de lacrar de novo é em vão.

Enfim. Voltei dizendo que não podia abrir o livro e o cara chiou, reclamou, fez um carnaval. Como não sou de dar corda para esse tipo de gente, abri o livro e deixei com o mal-educado. Ele viu lá umas páginas e depois abandonou o exemplar na mesa do café. Tremenda falta de educação.

Saí da livraria em setembro e voltei a trabalhar lá, temporariamente, em meados de dezembro, e fiquei por lá até meados de janeiro deste ano. Só para dar uma força no natal e cobrir parte das férias de uma pessoa. Quando, no meu último dia por lá, pensava que iria passar ileso desta vez, sem confusões ou estresses com clientes, eis que chega o mesmo mal-educado para me torrar a paciência.

Eu estava atendendo um casal que queria comprar o livro A pedra do reino, de Ariano Suassuna, que deu origem à série da Globo e tal. Tive que subir umas duas ou três vezes para atender o casal, porque não estávamos nos entendendo direito. Eles queriam um livro e eu pensava que estavam querendo outro ― além do livro com a obra de Suassuna, há mais 1 ou dois títulos ligados a ela, mas também à série. Na segunda ou terceira vez que subi para atender o casal, o mal-educado estava lá, na prateleira de Cinema, que fica exatamente ao lado da de Teatro, que era onde estávamos o casal e eu.

Ele estava olhando uns livros e eu já pensava no que poderia acontecer. Eu tinha certeza de que, dentre todos os títulos da seção (ok, não são muitos, mas não são poucos), ele escolheria um que estava lacrado para folhear. Dito e certo. Ele pegou o livro e perguntou por que uma livraria mantinha seus livros lacrados, que aquilo era uma burrice etc. Respondi, calmamente, porque aquele era meu último dia na livraria e nada nem ninguém me tiraria do sério ― ou pelo menos eu não demonstraria isso ―, que alguns livros já vinham lacrados das editoras e, por uma questão de comodidade nossa e segurança do livro, assim os mantínhamos. Além disso, alguns exemplares tinham espécies de encartes que não poderiam ficar soltos etc. Depois de explicar isso, ele aumentou o tom da voz e começou a dar um "piti" que não entendi muito bem, dizendo que em Salvador não é assim, que aquela deveria ser a única livraria a manter livros lacrados, porque livraria é lugar de folhear livro etc. Confesso a vocês que estava pedindo para ele dizer isso, que "livraria é lugar de folhear livro".

Porque da outra vez ele disse o mesmo e eu só fui pensar numa boa resposta minutos depois que ele foi embora. Desta vez eu não perderia a deixa, que estava em minha mente há meses. Mui tranquilamente eu disse: "olha, lugar de folhear livro é na biblioteca, livraria é lugar de comprar livro". Entendam: eu folheio livros em livrarias, adoro fazer isso ― às vezes, é a única coisa que posso fazer, porque no mais das vezes estou liso e não posso comprar. Mas eu realmente não poderia perder a chance de dizer isso na cara dele.

Que, aliás, ficou vermelha de uma hora pra outra e cheguei a ficar com um pouco de medo. Ele começou a me encher de desaforos, os quais não lembro bem agora, mas acho que iam pela linha do "é por isso que não venho aqui, você está sendo muito mal-educado, me atenda direito" etc. E eu, que estava demorando um pouco para abrir o livro, porque ele parecia ser um tanto frágil, apenas disse: "senhor, aqui está o livro, aberto". Ele gritava ainda mais, já chamando a atenção de quem estava no térreo. E eu repetia: "senhor, aqui está o livro, aberto".

Neste momento, o casal que eu estava atendendo subiu de novo ― em algum momento desta odisseia eles desceram para fazer uma ligação, a fim de confirmar qual livro iriam comprar ―, e com certeza eles me salvaram de levar um tapa cliente nervoso. Quando desci as escadas, acompanhado do casal, ouvi uma pancada na prateleira ― certamente foi ele dando nela o soco que não pôde dar em mim.

Lembrei de tudo isso e resolvi escrever um texto sobre porque, há pouco tempo, fui a uma farmácia nas redondezas e, ao entrar, quem estava no caixa, esperando pela vez de passar suas compras? Ele, claro. Enquanto eu procurava o corredor de vitamina C, o cara continuava lá. Quando fui me aproximando do caixa (duas moças atendiam, cada uma em uma máquina, uma de costas para a outra), percebi que ele discutia com um delas. Eu, claro, fui em direção à outra, que estava sem cliente. Pois meu velho cliente estava mais uma vez inspirado e, além de ofender a mulher do caixa (ia escrever "garota", mas ela deve ter seus 30 e poucos anos), ofendeu o rapaz que o atendeu no balcão de medicamentos.

Daí, quando ele saiu, esbravejando contra sabe-se lá o quê, comentei com a moça que me atendia que esse mesmo cara discutiu comigo duas vezes, e que ele deve ser maluco mesmo. Até para tranquilizar a outra moça, porque às vezes, nós, funcionários que lidamos com atendimento ao público, quando um cliente começa a falar grosso conosco, podemos pensar que o problema está em nós ou na falha de algum colega nosso. Há até aquela frase ridícula, "O cliente tem sempre razão". Mas, no caso desse lunático ― e de muitos outros ―, não. O problema está nele mesmo, em algum lugar muito sujo e distorcido da sua mente.

Sobre ele, tenho curiosidade de saber duas coisas, apenas: o que ele faz (onde trabalha, no caso, para nunca deixar currículo lá) e por que raios é desse jeito. Espero nunca descobrir.

Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 15/12/2009

 

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