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Terça-feira, 23/3/2010
Poesia sem ancoradouro: Ana Martins Marques
Jardel Dias Cavalcanti

"Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora pedra a areia." (Jorge Luis Borges)

Acaba de ser lançado pela editora Scriptum, de Belo Horizonte, o livro de poemas A vida submarina, de Ana Martins Marques. Ele reúne os poemas premiados no concurso "Prêmio cidade de Belo Horizonte" nos anos de 2007 e 2008. Prêmio justificável, dada a qualidade dos poemas.

Uma das principais características notáveis no livro de Ana Marques é que a sua poesia é o resultado de uma dupla reflexão entre o sentido do processo poético e o sentido do existir. No cerne destas duas questões nota-se a ideia da impossibilidade de redenção de um pelo outro. A poesia não salva a vida e a vida não salva a poesia.

No entanto, a consciência dessa impossibilidade é o que gera o caráter dessa poesia e define a voz própria desta poetisa. Poesia sem ancoradouro, a sua leitura parece deixar para nós mais os resquícios de uma ferrugem na âncora que a possibilidade do estabelecimento de um terreno seguro onde nós possamos vir a nos fixar.

O livro divide-se em sete partes, cada qual com um título e propósitos bem claros sobre a temática estabelecida para elas, embora quase todos os poemas pensem a si mesmos e à vida como uma impossibilidade. Da desilusão dos "navios que não têm mais porque partir", até o amor, pensado como uma "batata quente" que não pode ser suportável por muito tempo na nossa mão, os poemas se fazem como pequenos desastres que a existência insiste em revelar e a constituição da poesia enquanto linguagem não consegue sanar.

Eis a riqueza desse livro, enunciar na própria linguagem que a constitui a ideia de que expressar a experiência é algo fadado ao fracasso, como a própria experiência o é. A ideia da vida como algo estéril contaminando a poesia se constitui como um traço moderno, desde A terra desolada de T. S Eliot, passando pela desfiguração do eu em Pirandello e chegando a inanição de Beckett. A poesia apostou em si mesma, como problema da linguagem, para deixar à existência apenas o enunciado de seu fiasco.

Podemos pensar no poema "Álbum", nesse sentido, como metáfora da relação arte-vida ou eu-outro, que se esclarece como um encontro impossível, pois "nunca estivemos juntos numa fotografia". Sobrando apenas o diário ("dia 11, tarde"), poema que é ao mesmo tempo arte e destino de quem quer ou está condenado a "viver/ enfim/ na casa vazia".

O poema é também metáfora da vida, representados, ambos (poesia e vida), como uma espécie de relógio defeituoso que hora se atrasa, hora se adianta, com ponteiros dos segundos e das horas tendo tempos diferentes.

Como no poema "Lição de casa", a poesia, e não só a vida, é este destempero que deve ser evitado: "se os professores soubessem/ dos riscos/ não mandavam escolares/ escreverem poesia./ Ao contrário/ nos livros de poesia/ deveria estar escrito:/ não tente fazer em casa".

As razões do perigo da poesia (que Platão bem conhecia) são várias: "O poema cerze/ o que não tem reparo", peixes "no poema/ morrem sem água/ na primeira estrofe", "palavra por palavra/ o poema circunscreve seu vazio". "Porque chegam quase à beira do abismo/ cuidado ao chegar à borda do poema". Abominável em sua existência "o poema quer ver em tudo que é branco/ uma lição de esgrima".

Abusando da metáfora das "flores do mal", tal qual Baudelaire queria sua arte, em A vida submarina a poesia seria "minha insônia velada por umas flores feias". E a poesia de Ana Marques é como o desejo, um sonho que já anuncia sua decepcionante impossibilidade de realização. Na impossibilidade da realização, "a espera é a flor que eu consigo", pois "a viagem da espera/ é sem retorno".

Vale ler o poema "Buenos Aires", como exemplo dessa constante impossibilidade que a poesia de Ana Marques enuncia:

"Das longas avenidas que inventamos
sem nunca percorrer
senão com a boca suja de palavras
alguma ficará
para cenário
quando
numa noite
― mas não nesta ―
um de nós deixar o outro
para sempre."

O poeta seria essa espécie de homem que faz do seu ofício um trabalho destinado ao nada: "Trabalho dias seguidos/ uma morte que não entendo". "Na noite do poema/ outra noite/ se anuncia". Uma espécie de morte dupla, primeiro a do existir e, em seguida, a da insanidade inútil do escrever poesia como tentativa de redenção da "vida perdida", ou como queria Marcel Proust, do "temps perdue".

O livro como um todo não deixa espaço para um positivo aceno em direção à vida ou à arte da poesia como ferramenta de entendimento da existência: "Com que mapas desvendar/ um continente/ que falta?". E se a vida se anuncia em seu atraente calor, é do outro lado, longe do meu alcance, que ele existe: "penso em teu sexo/ quente/ calado/ em outra cama."

O poema "Horóscopo" nos fala do clamor da existência que vive de ser e não ser ao mesmo tempo, anúncio e decepção, talvez a utopia da poesia como "a fera que te habita", mas possibilidade apenas anunciada, pois desde sempre condenada à irrealização:

"Há duas ou três promessas
espreitando o dia.
Indício de visitas
e incêndios.
Saúde, mas nenhuma alegria.
Distrações e alegrias no trabalho.
No amor talvez não seja bem isso.
Indiferença não é uma saída nessa hora.
Família e dívidas preocupam.
Os astros continuam rodando à toa.
Impossível domar
a fera que te habita
o signo inexato."

Mesmo em poemas de evidente prosaísmo, absolutamente proposital, Ana Marques consegue imprimir seu desdém pela vida, preferindo o recolhimento melancólico que toma vários de seus poemas: "Todo mundo fica irritado quando digo/ que novamente não vou à praia/ .../ empresto a máquina para as crianças e peço/ fotografias do mar." (no poema "dia 13, manhã"). Ou "hoje é a chuva/ que lava os pratos" (no poema "dia 18).

Uma voz melancólica que visita Penélope, os poemas são como a noite que "esquece", "esgarça", de "perdas" e "falhas", com a "fidelidade por um fio".

Um dos poemas que melhor exibe esse drama moderno do fim da possibilidade de transcendência, mesmo na cultura, é o poema "Porta":

"a porta
como toda fronteira
é apenas para se atravessar
rapidamente ela já não serve mais
um corpo a corpo
e já se está do outro lado
dela nascem o fora e o dentro
ela que é seu vazio"

No entanto, a poesia não pode deixar de existir apesar de sua fugaz possibilidade de brilho. Último brilho na noite cega, é de onde ainda se pode enxergar um pouco mais, já que cada verso nos serve como "Lanternas": "na noite/ aceso/ o poema se consome."

O poema que dá título ao livro, "A vida submarina", resume o traçado todo do livro, com poemas que são das entranhas do obscuro mar, "submarinos", "espuma, como uma Vênus ainda sem beleza", "calcária e dura", onde "pensamentos guiam-se pela noite do Oceano, uma noite maior que a noite". A consequência é a poetisa oferecer ao outro (leitor?) apenas "meu silêncio", "meu alheamento", "minha recusa de promessa".

O poema se encerra com uma das mais belas imagens do livro, retrato do poeta em dó maior dando seu recado:

"Quem atribui ao mar
a culpa pela solidão dos corais
pelas vidas imperfeitas
dos peixes habituados ao abismo,
monstros quietos
só de sal silêncio e sono?
eu precisava te dizer,
enquanto palavras ainda resistem,
antes de se tornarem moluscos
nas espinhas da noite,
antes de se perderem de vez
no esplendor da vida
submarina"

Ana Marques produz neste livro uma equação rara, como anotou na orelha do livro Murilo Marcondes, professor de literatura da USP: "a elaboração dos poemas é concomitante à reflexão sobre o vivido, e nesse estreitamento entre linguagem e experiência talvez resida a maior força deste ótimo livro, em que os poemas, sempre muito sentidos, são também 'lugar para pensar'".

Nota do Editor
Texto originalmente publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, na edição de Janeiro-Fevereiro de 2010.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 23/3/2010

 

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