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Sexta-feira, 23/10/2009
Raios, trovoadas e técnicos de informática
Ana Elisa Ribeiro

Um raio desses enviados por São Pedro e minha placa de rede se foi. Aproveitando que a máquina já não era mais aquela, resolvi turbinar e tunar meu computador. As máquinas de escrever (datilografar ― algo que, na etimologia, continuamos a fazer) duravam mais. Até a vida inteira. Já troquei de computador incontáveis (e incontornáveis) vezes nesses quinze anos de "popularização da informática". E esta é minha enésima torre para um computador de mesa (em que escrevo bem mais confortavelmente do que em portáteis).

A placa de rede estava em curto-circuito. Umas coisas piscando sem parar, outras continuamente acessas. Tudo anormal. Uma peça esquentando demais. O pânico só não me acometeu porque eu havia feito cópias de segurança dos arquivos e, além do mais, o raio não queimara a máquina, apenas a placa que me liga à internet. Arre! Mas isso é muita coisa, camaradas. Ficar sem internet, hoje, é como estar alijado de um universo em que tudo acontece: trabalho, amigos, diversão, contatos, passado, presente e futuro, não necessariamente nessa ordem.

A decisão de desconectar tudo e correr para a assistência técnica mais próxima não podia demorar muito. Sem placa, nada de e-mails. Talvez essa fosse a questão mais grave. Em momento crítico da organização de várias coisas importantes, não ter e-mail é quase a falência dos eventos. A assistência técnica é ali na esquina, literalmente. O custo de vida aqui é menor do que em outras zonas da cidade, sem faltar nada, nem sobrar, o que também é importante. Os meninos que nos atendem na lojinha são caladões, mas resolvem nossos problemas com alguma eficiência. Talvez essa mesma eficiência custasse três ou quatro vezes mais em outro lugar.

Quem vai consertar computador está sempre com pressa, digo, a vítima. É como prestar serviços de revisão, em qualquer setor. As pessoas chegam contando histórias trágicas, de prejuízos e de prazos. O técnico que se vire com tanta encrenca alheia. Fiz o mesmo. Contei casos de prazos e projetos que poderiam ir por água abaixo. É claro que o técnico manteve um sorriso sutil no canto da boca, mas fez cara de quem compartilhava comigo aquela dor de não poder ler e-mails. Quase cheguei a pensar que o havia convencido de que minha máquina merecia mais e mais urgente atenção do que as tantas outras que deviam estar ali no andar de cima, na "oficina". Fiz a pergunta D: "Quando fica pronto? Hoje?". Ao que ele respondeu com um mal-disfarçado risinho de escárnio: "Amanhã ou depois, porque tem um bocado de máquina na frente". Pelo menos não me chamou de "dona". Já me dei por satisfeita. Esses meninos são educados, negociantes educados.

Lá se vai minha placa. E aquela sensação de que posso estar sendo enganada? O que faço com ela? Sabe lá que coisas vão querer trocar dentro daquele gabinete preto. Ele abriu tudo na minha frente. Mostrou as luzes piscantes e contínuas. Pediu meu dedinho para sentir o superaquecimento de um componente. Pôs as mãos nas ventuinhas, no processador. Disse que meu disco rígido estava a salvo e prometeu mais um backup. Aproveitei para desfiar todos os outros problemas do computador: o som não funciona, o Word está lento, às vezes ele não liga, embora dê aquele estalinho. O técnico aproveitou para me dar uma bronca por conta da quantidade de arquivos no desktop. "Isso também faz sua máquina ficar lenta para abrir". Mas, mal sabe ele, isso não tem jeito.

Técnico de informática, médico e designer têm que estar (e ser) preparados para ouvir as pessoas. Sei que isso é meio polêmico e que nem todo profissional vai querer tomar esse trabalho para si, mas é importante saber ouvir. Não estou dizendo que esses caras precisem ficar horas ouvindo as agruras do "paciente". Se fosse isso, eu teria incluído na lista os psicólogos e os terapeutas de toda espécie. Não é isso. Refiro-me ao "saber ouvir" para interpretar os problemas e tomar decisões acertadas (ou, ao menos, com essa intenção).

A dona Maria chega no consultório médico com a seguinte queixa: "Dotô, tô com a espinhela caída e isso me dá uma dor danada. Ontem, além disso, meu joelho embodocou. E na quarta passada fiquei com um pouco de dor aqui na cacunda". O doutor examina, põe a mão e ajeita lá o remédio da dona. A espinhela caída ele sabe o que é, assim como o problema do joelho e da cacunda. Tudo com a mesma origem na má postura da Maria. O designer ouve assim: "Queria fazer um cartão de visitas bem moderninho, com um formato assim arrojado, mas não pode ser retangular, entende?". Ele propõe uma solução gráfica e lá vem o cliente: "Não gosto dessa cor, ela me dá uma sensação de angústia. Queria uma cor mais moderna, tipo assim, parecida com um disco do Backstreet Boys que tenho em casa. Quem sabe verde-limão e prata? Mas aí você mantém o preço, né?". O técnico de informática ouve a queixa apressada: "O computador está fazendo um barulhinho tipo um grilo, aqui, mais ou menos do lado esquerdo do gabinete. Quando eu ligo, dá um estalo, liga o ventilador, mas ele demora a entrar no Windows. Será que é no HD?". E esta lista ainda poderia ser acrescida dos técnicos em geral, especialmente os mecânicos de carros.

É quase adivinhação. É a piada do cara que cobrou mil reais para apertar um parafuso. Enquanto os outros cobravam caro e não resolviam o problema. Este cara cobrou o justo e apenas apertou um parafuso. Quanto valia isso? Saber onde está o parafuso. Os técnicos são pagos para saber onde ficam os itens que podem se estragar. Eles detêm um conhecimento que custa caro a quem não sabe o que é uma placa-mãe e como ela funciona. E como ficamos vulneráveis nessa brincadeira. São Pedro manda um raio queimar minha placa de rede (já sei, preciso pedir ressarcimento à companhia elétrica) e lá vou eu depender de um técnico. Sorte minha se São Pedro me indicar um técnico honesto. Assim foi com o computador, com meu modem, com minha tevê e com meu som, que também sentiram a tempestade da semana passada.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 23/10/2009

 

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