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Quarta-feira, 21/11/2001
A literatura, eu, você e a literatura
Paulo Polzonoff Jr

Daniela Mountain

Semana passada fiquei muito doente e não pude contribuir para o Especial de Literatura do modo que gostaria. Ainda bem, porque eu estava prestes a escrever uma “coluna de formação”, contando como a literatura entrou na minha vida, quando acabei caindo na cama. Nestes dias em que a febre tomava conta do meu corpo, tive muito tempo para pensar no que escrever. Tantas sinapses, contudo, não foram suficientes para me fazer escolher um nome que me satisfizesse. Cogitei, possivelmente graças a um delírio, escrever até sobre gibis, pois foi através de Pato Donald e Tio Patinhas que entrei no mundo das letras; depois passei pelos lugares-comuns da literatura: Machado de Assis, Lima Barreto, Rosa,..., e nada; na literatura universal o leque ficava grande demais, e à medida em que eu pensava num autor, descobria que não tinha nada de especial para falar sobre ele. Convinha, pois, o silêncio.

Saí da cama, tornei a ler e a conversar, mas a dúvida persistia. Há algumas horas, eu estava para escrever sobre Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Que tal? Não... É um livro delicioso, de se ler várias vezes, livro que é uma das minhas maiores influências nos meus modestos exercícios literários, mas não é um livro realmente representativo, digno de uma coluna inteira. O Estrangeiro, de Camus? Já escrevi muito sobre esse livro, que me causou comoção nas primeiras duas vezes que o li. Depois, Camus foi ficando chato e, ao folhear o livro, simplesmente fiquei imune às páginas finais que outrora me fizeram chorar. Por que será?

Aqui a coluna que escrevo foi se delineando. Fui repassando minha curta e tediosa vida e pensando na real importância que os livros tiveram. É aquela eterna questão que os jornalistas de primeira viagem sempre perguntam aos escritores, uns mais bocejantes que os outros: “qual a utilidade da literatura para a sociedade?”. Incrível como os escritores podem ser seres desinteressantes. A maioria deles responde sempre a mesma coisa, com aquele discurso mastigadinho que vocês devem conhecer.

Bem, aqui estou eu escrevendo sobre a importância da literatura, não para a sociedade, que é uma abstração horrorosa, sem cara nem alma nem nada; escrevo sobre a importância da literatura para o indivíduo. Aqui é preciso que se fale um pouco sobre ele, o indivíduo. A afirmação do ser humano como indivíduo, para mim, é a última grande barreira ideológica, por assim dizer, a ser vencida. Absolutamente tudo nos condiciona ao pensamento-comum; resistir a este Pensamento é a luta. Claro que não se trata de uma luta nos moldes dos idiotas dos anos sessenta e setenta, que acreditavam na paz a partir da luta armada, que acreditavam no romantismo da guerrilha, aquela coisa que a gente conhece bem; trata-se de uma luta silenciosa, que se faz diariamente, nas mínimas escolhas. A literatura, para falar a verdade, é uma das frentes mais fáceis de o indivíduo se impor. Sim, porque, apesar da pressão mercadológica das editoras para que se leia este ou aquele best-seller, a leitura ainda é um gesto solitário, individual. Claro que não sou ingênuo em pensar que o que resulta desta leitura seja, por excelência, uma conclusão individual. Um exemplo disso são os autores ditos obrigatórios. Já experimentou, no meio de uma aula do curso de Letras, dizer que simplesmente não gosta de Machado de Assis? O Ministério da Saúde alerta: nem tente.

É inegável, contudo, que a literatura tenha uma influência bastante própria sobre o indivíduo. Falei agora há pouco em Machado de Assis, que me remete a duas características que não são novidade para ninguém que tenha lido as Memórias Póstumas de Brás Cubas: a galhofa e a melancolia. Garanto que uma grande parcela da população que tenha acesso ao livro não veja o grande humor existente na obra de Machado de Assis. Não há mal algum nisso, dadas as condições em que o escritor nos é enfiado goela abaixo, durante o estudo fundamental. Machado de Assis pode ensinar várias coisas ao indivíduo, além da melancolia que é característica básica daqueles que o lêem. A este indivíduo que vos escreve, por exemplo, bombardeado por propagandas de igualdade in extremis entre os sexos, propaganda politicamente correta, Machado de Assis foi utilíssimo ao escrever simplesmente que Capitu, aquela, tinha olhos oblíquos. Só isso já desmentia que nós, homens e mulheres, vemos a vida e os relacionamentos de forma igual, e só isso bastava para destruir qualquer discurso de queima de sutiã (que jamais presenciei, ainda bem).

Citei Machado e corri um risco, porque os mais exaltados podem me acusar de sempre citar os mesmos autores. Tudo bem, que tal um pouco de “literatura do segundo escalão”? Na semana passada, li Veia Bailarina, de Ignácio de Loyola Brandão. Confesso que o autor não me atraía, ainda mais depois da leitura de Zero e Não Verás País Nenhum, livros-ícones de uma esquerda equivocada, na minha opinião nada modesta. O livro é surpreendente, não por sua qualidade literária intrínseca (eu não acredito que usei esta palavrinha maldita), mas por sentimentos que ele é capaz de suscitar, dada sua sinceridade. O livro não é um romance, propriamente dito; é, a meu ver, uma grande crônica, na qual o autor conta seu drama ao descobrir que tem um aneurisma. Só isso e mais nada. Ignácio de Loyola, contudo, escreve com uma arma da qual 90% dos escritores atuais não dispõem: honestidade. Simples e direto, fazendo uso de reminiscências peculiares, mas sem cair no saudosismo despropositado, Loyola acaba por criar um panorama em que a morte na sala de cirurgia (que, sabemos, não acontecerá) não parece tão ruim assim. Loyola me fez acreditar novamente, muitos anos depois de um mergulho no pessimismo suicida de Álvarez de Azevedo e Augusto dos Anjos, que a morte pode ser uma saída legal, orgulhosa mesmo, dessa empreitada que se chama vida. Isso, repito, sem cair no desespero depressivo.

Para encurtar a coluna, cito apenas mais um livro, antes de sugerir que vocês dêem uma lida no meu texto Fragilidade, teu nome é ser humano!, pouco lido, por sinal. O livro de que falo é Dia de Finados, de Cees Nooteboom. Não terminei de ler o livro ainda, porque o romance é destes que a gente lê uma ou duas páginas por dia, para não gastar. Eu jamais tinha lido um livro do escritor holandês porque ando meio avesso a livros de autores novos (Nooteboom tem quase 70 anos!), e mais uma vez o indivíduo cai diante da força das palavras. É bom que se diga que tanto Nooteboom quanto Loyola não são escritores do quilate de um Goethe ou Shakespeare, de ensinamentos longos e desconcertantes. Tampouco são donos daqueles axiomas que pontuam a literatura de auto-ajuda. Eles fazem parte, isso sim, de um seleto grupo de escritores que, percebe-se, ainda tem algo a nos dizer. Basta que escutemos com a parcimônia da contemporaneidade. Voltando ao Dia de Finados, que é um livro bastante frio, sem muita ação, mas com muita desta nossa filosofiazinha cotidiana, imune às citações de Hegel e Schoppenhauer. Ele me deu muitas pequenas epifanias, que são aqueles momentos (se você lê, já deve ter experimentado) em que você põe o livro de lado, respira fundo (ou dá uma tragada num cigarro) e desiste, por algum tempo, de qualquer ambição literária, porque tem a noção de sua pequenez diante dos verdadeiros escritores. Uma destas epifanias é de uma simplicidade que pode até provocar riso entre meus leitores (corro este risco). A certa altura, o autor, em conversa com uma amiga, discorre sobre sua timidez diante das mulheres. Ele afirma ser incapaz de aproximar-se de uma mulher e puxar conversa. Ao que ela diz, simples e afiada: “Isso é só vaidade”.

Vaidoso que sou, paro por aqui. Sugiro que vocês, para maiores informações sobre esta influência direta da literatura na nossa vida, dêem uma lida no texto Fragilidade, teu nome é ser humano!, que publiquei há algumas semanas. Se vocês chegaram até aqui, entenderão o porquê desta sugestão.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 21/11/2001

 

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