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Quarta-feira, 18/11/2009
Perguntas sagradas
Larissa Pontez

Em 2001, a jornalista do New York Times Natalie Angier escreveu um texto chamado "Confissões de uma ateia solitária", sobre as dificuldades que enfrentava ao assumir seu ateísmo na era Bush.

Depois que eu tive a ideia para este texto, demorei uma semana para realmente começar a escrevê-lo. Não exatamente para organizar as ideias na minha cabeça, mas para acalmá-las. Porque ― e isso não é novidade para quem me conhece ― esse me é um assunto sensível. Mas essa sensibilidade não é exclusiva. Na verdade, todo mundo é sensível a esse assunto. Já tive discussões homéricas com pessoas que nem sequer eram religiosas, por discordar de assuntos que simplesmente "não se discutem". Porque, afinal, pode-se ser a favor do aborto, da pena de morte, do suicídio e da legalização das drogas e da prostituição, e isso é democrático. Mas se você é contra religiões, você é nazista.

Portanto, fica o aviso. Você pode se ofender com o assunto deste texto. Aliás, estatisticamente, você vai se ofender com o assunto desse texto. Mas, se mesmo assim quiser continuar a lê-lo, abre-se aqui o debate.

O que mais me preocupa quando entro em uma discussão a respeito da "fé" versus "ciência" é que, frequentemente, as pessoas as colocam no mesmo pacote. Se você é ateu, provavelmente já ouviu esta frase: "Se você quer acreditar na ciência e quer que os outros respeitem isso, também tem que respeitar a fé dos outros". Vou colocar aqui, então, uma explicação simples, do Wiktionary em tradução livre (já que esse artigo não existe em português), sobre o que é o método científico, para estarmos todos na mesma página:

"Método científico: método de descoberta, a respeito do mundo natural, baseado na criação de hipóteses testadas empiricamente, desenvolvidas e revisadas para a constituição de teorias que melhor expliquem os dados conhecidos."

Em resumo, a ciência não depende de opinião. Qualquer hipótese deve ser ― e é ― testada e comprovada antes de ser considerada verdadeira. E, ainda assim, está sempre disposta a ser revisada e, se necessário, desmentida. A fé não funciona assim. A fé baseia-se no oposto, na ausência de debate e questionamento; no crer, e fim. Portanto, "acreditar" na ciência não é o mesmo que "ter fé" na ciência, porque a ciência não exige fé. Ela exige lógica e, como qualquer outro homo sapiens sapiens, isso eu tenho. O que me incomoda em qualquer religião é exatamente a negação do que naturalmente nos diferencia dos outros animais: a racionalidade.

Porém, só muito recentemente percebi algo que pode explicar essa frequente confusão entre "ter fé" e "acreditar": professores de ciências ruins.

Podem parecer fenômenos não-relacionados, mas, para muitas pessoas, provavelmente existe pouca diferença entre um sermão em uma igreja e uma aula de biologia. (Com a suposta diferença de que "bombar" no primeiro significaria uma eternidade no inferno...). Se em algum momento elas perguntassem "mas por que isso é assim?", a resposta, em ambos os casos, seria "porque está no livro". Na religião, essa resposta faz completo sentido, já que os escritos da Bíblia, Torá, Alcorão etc. parecem ser provas suficientes para qualquer coisa. Em uma aula de ciências, isso é um crime.

Tolher o questionamento de uma criança é sinônimo de deseducar. É a antítese do método científico. Isso cria uma aceitação passiva, sem raciocínio. E entre um dado abstrato cuspido, e uma "boa história", adivinha qual a criança vai escolher? Daí nascem os "museus criacionistas" dos Estados Unidos.

Por falta de boa vontade, ou mesmo de conhecimento, sem querer, professores de ciências, que deveriam ser a maior expressão de uma sociedade humanista, contribuem para o aumento de pessoas passivas, supersticiosas e, quase consequentemente, religiosas.

O Iluminismo, heroi da Modernidade, foi substituído por um tacanho senso de respeito e tabu.

Mas eu tive bons professores de ciências. Portanto, eu não acredito que existam assuntos que simplesmente "não se discutem". Como denuncia Richard Dawkins, as religiões têm sido protegidas por uma cortina de intocabilidade por tempo demais.

Eu sonho com um mundo e um tempo em que, em qualquer idade, é possível perguntar, questionar, debater qualquer assunto; em que as pessoas têm suas crenças porque chegaram a elas através de suas próprias conclusões, não de doutrinamentos; em que dogmas, superstições e violências causadas pelas religiões sejam deixados para trás; em que explicações sejam sempre buscadas; um mundo com bons professores de ciências.

Eu sonho com um mundo não tão solitário para uma ateia. Mas eu vivo neste.

Nota da Autora
Só para constar: eu não acho que apenas gênios, como José Saramago ou Dawkins, possam blasfemar e serem respeitados. Venho por meio deste evocar meu direito à blasfêmia. Obrigada, tenha um bom dia.

Nota do Editor
Larissa Pontez mantém o blog JOM ― JamaisOuMenos.

Larissa Pontez
São Paulo, 18/11/2009

 

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