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Segunda-feira, 30/11/2009
Murilo Rubião e o chocolate
Wellington Machado

"― Me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
― Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
― Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
― Está bem moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento..."


Este pequeno trecho, que vale por uns cem livros de Dan Brown, é o começo do conto "Teleco, o coelhinho", do escritor Murilo Rubião ― um dos precursores do realismo fantástico no Brasil e um dos responsáveis pelo lançamento de uma geração de escritores, quando dirigiu o Suplemento Literário, em Belo Horizonte.

Por sugestão de um amigo, vou relatar um encontro que tive com o Rubião, em meados dos anos 70, quando eu era ainda criança. O meu avô Daniel, apesar de não ser uma celebridade, era uma pessoa de certa forma bem relacionada em vários setores da sociedade belo-horizontina. Funcionário público "faz tudo" (estamos nos anos 60 e 70), tinha livre trânsito entre políticos, médicos, advogados, escritores, atores, e na imprensa em geral. Descendente de portugueses (tinha até sotaque d'além-mar), era amante da política. Autodidata, trocava ideias e aconselhava um caminhão de gente que vinha a nossa casa (morávamos praticamente juntos, em casas contíguas).

Sempre tive uma certa afinidade (ou cumplicidade) com meu avô ― sou o primeiro neto. Não sei explicar exatamente o porquê. Talvez pela infinidade de coisas interessantes que ele me mostrava, ou pela sua verve, ou pela sua indignação com o que achava incorreto. O fato é que eu, vez ou outra, estava a seu lado, a tiracolo. Eu sempre fazendo aquelas perguntas complicadas de criança, e ele sempre me respondendo pacientemente.

Calhou de irmos visitar o Murilo Rubião, de quem meu avô Daniel era amigo ― acho que trabalharam juntos na Imprensa Oficial. Eu nem sabia de quem se tratava, muito menos de sua importância. Tive um grande choque, com momentos de temor, quando entramos no apartamento e eu me deparei com aquele senhor de cara fechada, óculos de grossa armação e corpo rotundo. Um apartamento escuro e silencioso, com livros, móveis antigos e algumas plantas. Via-se que morava ali um senhor solitário, centrado, sério e exigente.

Sempre morei em casa, mas naquele momento tive vontade de morar em apartamento. Mas que fosse igual ao do Rubião, uma "caixa em penumbra", onde o isolamento fosse uma proteção do mundo externo. O apartamento do Murilo era misterioso. Passava-me uma sensação de "exigência de privacidade" ― da qual o escritor nunca abrira mão, pelo que sei.

Um pouco de descontração, pelo menos para mim, foi quando o Murilo nos convidou para ir até a cozinha. Ele abriu um armário, acima da pia, e retirou uma enorme caixa preta, abarrotada de chocolates Diamante Negro. Abriu a caixa e disse para eu me servir. Diante da seriedade daquele "monstro" à minha frente, peguei um chocolate, timidamente. Na verdade eu queria a caixa inteira; não aquela ― pois eu temia o Rubião ―, queria uma caixa de chocolates igual àquela, preta, cheia de Diamantes Negros. Ele disse para eu tirar mais um, mas, pela boa educação, recusei. Ele, então, percebendo a minha timidez e o brilho nos meus olhos, tirou mais um Diamante e colocou-o na minha mão. Tenho nítido em minha memória o olhar paciente daquele senhor; aqueles olhos pequenos, reduzidos pelas lentes dos óculos.

Não comi os chocolates na hora; guardei-os no bolso. Voltamos à sala-escritório e a conversa entre ele e meu avô durou pelo menos umas duas horas. Fiquei sentado, ignorado em uma cadeira antiga, em silêncio, durante todo o período. Não havia um brinquedo para me distrair naquele apartamento lúgubre. Eu olhava os móveis, a máquina de escrever, os papéis, alguns quadros. Como eu era pequeno, minhas pernas balançavam soltas por baixo da cadeira. Uma criança bem comportada, com sapato social, meias, camisa de botão, ouvindo sem entender um diálogo que nunca terminava, já meio afoita para sair dali e saborear os chocolates.

Hoje eu não conseguiria identificar a rua ou bairro onde ficava o apartamento do Murilo Rubião. O escritor morreu em 1991. Não sei se os dois eram grandes amigos, mas percebi uma ponta de tristeza em meu avô Daniel, muito bem disfarçada ― ele tinha a arte de absorver tristezas, só para proteger os seus ―, quando o escritor se foi. Meu avô morreu em 1995 ― em minha memória, restaram os lugares e amigos que visitamos. Foi quando me dei conta da importância do Rubião e passei a ler seus contos com admiração. Fiquei sabendo que ele foi um escritor perfeccionista ao extremo ― chegava a escrever apenas uma frase por dia, bem lapidada. Vai daí a sua reduzida obra (cerca de 50 contos; parece-me que apenas 33 foram organizados em livros).

Não vi o Murilo sorrir naquele encontro com meu avô. Talvez ele tivesse o mau humor irônico e surreal do coelho Teleco. Mas toda vez que vejo um Diamante Negro, lembro do Murilo Rubião.

Wellington Machado
Belo Horizonte, 30/11/2009

 

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