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Quarta-feira, 3/2/2010
O mundo pós-aniversário
Guilherme Pontes Coelho

"Vou dobrar à esquerda" ― só pensar isso não vai fazer com que você, enquanto caminha, tome outra direção. Há algo mais, algo fronteiriço entre a intenção e a ação que determina qual o próximo evento que você causará. Será a vontade? Dobrar à esquerda ou não, é o seu destino em jogo, sua história sendo escrita. "Vou permanecer aqui" ― só isso também não será suficiente. O acaso está além de qualquer controle. É preciso alguma coisa mais substancial que a pura teimosia contra os acasos que nos põem à prova. Será o controle? Ou princípios?

Quando há amor envolvido, as indagações do primeiro parágrafo são plenamente inúteis.

Irina McGovern é ilustradora de livros infantis. Mora na Inglaterra há alguns anos com seu companheiro, Lawrence Trainer, um pesquisador num instituto de estudos estratégicos. Ambos são norte-americanos. Moram juntos, dividem as contas, têm rotina. São casados na prática, mas eles, ao contrário de nós, brasileiros, não veem nisso um casamento ― e esta palavra, na relação deles, nunca é mencionada sem extrema cautela.

Jude Hartford, a editora, e por um certo tempo amiga, de Irina, convidou a ambos, ela e Lawrence, para comemorarem o aniversário de seu marido, um famoso jogador de sinuca inglês, Ramsey Acton. Famoso porque no Reino Unido este esporte é popular e milionário. O aniversário, 6 de julho. Essa festinha virou tradição dos casais quarentões e desde 1992 acontecia. Até chegar o ano de 1997 e o mundo se dividir em dois.

A tradição já estava meio capenga em 1996. Jude e Irina romperam relações de maneira hostil, por motivos aparentemente profissionais, e Jude e Ramsey se separaram, por razões também profissionais, digamos. Neste ano Ramsey foi sozinho à casa dos norte-americanos comemorar seu aniversário com um jantar feito pela própria Irina ― ela, uma exímia chef. E o jantar foi madrugada adentro, com Ramsey enchendo a cara de vinho, conversando alegremente com Irina, e Lawrence lavando os pratos do jantar ruidosamente, indignado com o convidado espaçoso. Justo ele, telespectador de sinuca e fã confesso do Ramsey. Nas prévias comemorações a quatro, Lawrence era quem mantinha o grupo coeso. Bom falador, muito informado em política internacional, fã de sinuca ― tinha os elementos necessários para impedir que a histérica e falsa alegre Jude ditasse o tom das conversas, para que Ramsey ainda se sentisse o centro das atenções e para que Irina não sentisse a responsabilidade de entabular conversas. Mas ela também se sentia podada.

Um ano depois, Lawrence viajaria. Deixando o já desfalcado grupo desfeito. Mas por força da tradição, Irina foi jantar com Ramsey (por sugestão do próprio Lawrence). Jantam, conversam, bebem. Ele a leva para casa (dele), descem pro porão, fumam maconha. Mais uma aulinha particular de sinuca.

Então as coisas chegam àquele ponto de tensão sufocante. Aquele que exige uma atitude enérgica, visto que falamos de uma mulher casada em seu primeiro encontro semiclandestino. Aquele ponto em que ela ou sucumbe ao desejo ou o nega resolutamente.

No livro de Lionel Shriver, O mundo pós-aniversário (Intrínseca, 2009, 544 págs.), Irina faz as duas coisas. Naquele ponto, no porão de Ramsey, a história se desdobra em duas: numa, Irina e Ramsey se atracam voluptuosamente; noutra, Irina foge, firme, à tentação ― alimentando, assim, a subterrânea dúvida do "E se naquele dia eu e Ramsey...". São duas histórias, em universos paralelos, que Shriver conta.

É o segundo livro romance de Lionel Shriver publicado no Brasil. O primeiro, Precisamos falar sobre o Kevin. Ambos pela Editora Intrínseca, ambos competentemente traduzidos. Noutra coluna, já foi dito o quão boa é Shriver, o quão forte é seu poder de análise ― sem que isso atrapalhe o ritmo da história contada. Sagacidade crua e dura, sem fazer concessões a nada e, ainda assim, ou talvez por isso mesmo, sem defender teses. Escreve intensamente, sobre pessoas de verdade, que transpiram, mijam e tudo o mais, sem jamais cair na vulgaridade barata, nem no criticismo vazio. Além do mais, se contar uma história bem contada já é coisa de mestre, imagine contar duas, simultaneamente, sobre os mesmos personagens, em universos paralelos.

É um livro para adultos. O que deixa muito evidente como todos nós, ainda "adultos", continuamos nos comportando como crianças, com as mesmas necessidades de sermos amados e de termos o nosso amor reconhecido (o que dá na mesma). Necessidades eternas, intrínsecas ao ser humano.

Essa reflexão parece ser feita sob medida para os homens de Shriver, Lawrence e Ramsey. Tão opostos, tão parecidos. Os homens ganharão muito lendo este livro. É impossível não se sentir mais maduro, mais homem, mais ligado à vida de verdade (razão de ser da literatura, aliás) depois de lê-lo.

N'O mundo pós-aniversário, você lerá as duas vidas de Irina, duas vidas contrastantes, nas quais os mesmos sentimentos, ou melhor, o mesmo sentimento ― a vontade de amar ― submerge e emerge ao ritmo ditado pela maior das realidades: o cotidiano.

Para ir além





Guilherme Pontes Coelho
Brasília, 3/2/2010

 

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