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Quarta-feira, 9/12/2009
Só sei que nada sei
André Pires

Quando ainda estava na faculdade de jornalismo, muito antes de toda a celeuma em torno da obrigatoriedade do diploma, tive um momento que poderia ser classificado como uma "epifania teen". Na época e ocasião, uma máxima convenientemente me agradava: "quem faz a faculdade é o aluno". Até mesmo os professores diziam que no estágio é que se aprende, e eu, que já estava estagiando há dois anos, por que diabos perdia a manhã na aula quando podia estar na praia?

Essas teorias foram muito úteis para justificar a mim mesmo que ler toda a obra de Bill Bryson era muito mais fundamental para minha formação do que prestar atenção às aulas de Estatística ou que trancar seis meses de faculdade e ir fazer mochilão pela Europa valeria mais a pena, no final das contas. Dessa forma, posso dizer que, após todos esses anos, o que restou em minha memória em termos de conteúdo programático era aquilo que realmente importava. O que realmente iria fazer a diferença.

E talvez essa espécie de faculdade altamente específica que cursei ― ministrada e administrada por mim mesmo ― tenha sido a preparação perfeita para o tipo de trabalho/missão que estou encarando hoje. Junto com mais três amigos viajo o mundo em busca de destinos considerados perigosos ou proibidos, filmando o programa Não conta lá em casa, para o canal de TV a cabo Multishow, da NET. A premissa da série já nos levou a Mianmar, Coreia do Norte, Irã e Iraque, entre outros destinos. Mas após todo estudo teórico e preparação de vida, o preceito básico com que tento encarar todas as nossas viagens é a simples (porém nada simplista) citação de Sócrates com que esbarrei ainda em minha errática jornada universitária: "Só sei que nada sei".

Seguindo a premissa do grande filósofo, tento me despir de todo e qualquer pré-conceito (assim mesmo, com hífen) ao experimentar as diferenças, quase sempre surreais, das culturas com as quais me deparo. E aí, um livrinho que se salvou naquela seleção natural que eu promovi para a minha faculdade foi a edição de bolso de Etnocentrismo e Relativismo Cultural. Termos que parecem altamente acadêmicos, mas querem dizer nada além de que o julgamento que fazemos de qualquer cultura é formado com base em valores da nossa própria. Sendo assim, e em decorrência exatamente disso, os conceitos de bem, mal, bom, ruim, são relativos em cada sociedade. Sinceramente, depois do Lonely Planet, essa deveria ser a Bíblia (ou o Corão) do viajante com o mínimo de humildade para não só conhecer outra cultura, mas vivenciá-la de verdade.

Foi assim que tive mais facilidade em compreender, e não somente aceitar, algumas situações com as quais me deparei aí pelo mundo. Como por exemplo: que as meninas que conheci em Teerã continuariam a usar o véu mesmo lutando e arriscando a vida em passeatas contra o governo pelo direito de não usá-lo. Que mesmo tendo parentes assassinados, sua casa invadida e seu país destruído, um iraquiano fazia questão de absolver os EUA, especificamente, de culpa. Que a nossa guia coreana, uma jovem de 27 anos, estava mais interessada em saber sobre o sistema de ensino público do Brasil do que conhecer mais daquele som estranho que apresentamos a ela: o rock'n'roll.

É quase impossível comparar o valor das diferentes formas de experiência cultural que vivemos quando se viaja de uma forma tão específica e não usual como a nossa, seja por nossos objetivos ou, principalmente, pelos próprios destinos por onde passamos e situações em que nos colocamos. Não foram poucas as vezes em que um encontro casual ou um passeio totalmente fora do circuito mais óbvio rendeu muito mais ― não só para nossas pretensões profissionais, mas também pessoais ―, que uma ida a um grande centro histórico. No Irã, visitamos as ruínas históricas e arrebatadoras de Persépolis, mas também batemos uma bola na calçada com um garotinho de pouco mais de seus oito anos de idade num dia em que nenhum adulto se arriscava sair à rua durante o dia devido ao calor de mais de 45 graus que fazia. É impossível fazer um juízo de valor entre as duas situações. Quantas leituras são possíveis de se fazer ao analisar o contexto desse menininho brincando tranquilo e em paz com sua bola em uma viela deserta, praticando o milenar e milionário esporte bretão em um país considerado berço de fanáticos religiosos e terroristas em potencial?

Na Coreia do Norte, após dias e dias de passeios oficiais pelos mais variados e grandiosos monumentos, conseguimos finalmente trocar uma ideia de forma mais informal com nossa jovem guia oficial enviada pelo governo norte-coreano. E ouvir da boca dela perguntas aflitas sobre o que o mundo achava dos testes nucleares realizados por seu país, o que era Seinfeld, ou como funcionava uma discoteca com certeza foram mais úteis para que formássemos uma visão mais precisa de seu país do que qualquer visita a estátua e suas explicações históricas ensaiadas. Sem grandes pretensões, mas com enormes indagações. Com muita base de pesquisa para fazer as perguntas certas, mas muita humildade para reconhecer que essas perguntas talvez não fossem as mais certas em determinadas ocasiões. A ideia é chegar de peito aberto para o bem ou para o mal.

Uma câmera na mão e nenhuma ideia na cabeça. Esta é a forma com que pretendo continuar a encarar todas as minhas viagens durante este projeto. Deixarei que os personagens que cruzam meu caminho por esses países tão inusitados sejam os responsáveis pela formação crítica de meus conceitos sobre as suas culturas. Pois eu só sei que nada sei.

Nota do Editor
Leia também "Sombras Persas (I)" e "Um brasileiro no Uzbequistão (I)".

André Pires
São Paulo, 9/12/2009

 

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