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Segunda-feira, 11/1/2010
São Luiz do Paraitinga
Ricardo de Mattos

"É preciso sepultar os mortos e cuidar dos vivos" (Marquês de Pombal)

Quando criança, acompanhávamos nosso pai, engenheiro agrônomo do antigo Banespa, em suas andanças pelas cidades próximas a Taubaté. Responsável pelo setor de crédito rural, ele dava conta não apenas da sede regional, mas das agências vizinhas. Seu trabalho extrapolava o aspecto administrativo, sendo necessário visitar as propriedades rurais de quem solicitava empréstimo ou financiamento. Até os catorze anos, íamos junto, o que nos permitiu o contato com o povo caipira em seu ambiente legítimo. Dos municípios situados entre Taubaté e o Litoral Norte, conhecemos Natividade da Serra, Redenção da Serra, Lagoinha, Cunha e São Luiz do Paraitinga. Anos mais tarde, já exercendo a profissão, acompanhamos nesta última uma de nossas primeiras causas. Era de propósito que reservávamos a tarde para verificar o andamento processual. Mesmo dirigindo, preferíamos ir de ônibus e descíamos na rodoviária para atravessar a cidade a pé. No mês de setembro de 2009, fomos em duas noites da Semana da Canção, a da homenagem a Elpídio dos Santos e a da apresentação de Luiz Melodia. Vimos São Luiz tanto em seu cotidiano como "vestida para festa".

"Quem viu e quem vê", conforme diz a expressão popular. Após as notícias da televisão, apressamo-nos eu, mãe, tia e namorada a apresentarmo-nos como voluntários ao Centro Espírita André Luiz, um dos postos envolvidos no socorro aos desabrigados e suporte dos demais trabalhos. Sua cozinha, auxiliada pelo Exército, dá conta da comida fornecida à Defesa Civil, ao Corpo de Bombeiros e a quantos mais peçam. A operação é de guerra: uma vez entrando nas dependências do Centro, quem estiver realmente disposto a trabalhar é logo encaminhado para alguma atividade: descascar legumes, lavar panelas, picar ingredientes, descarregar caminhões, montar cestas básicas, carregar caminhões, varrer, lavar, lacrar marmitex e outras. No dia seis, concluída a primeira parte das tarefas, adentramos o centro urbano para ver o estrago da enchente. O rio transbordou de seu leito, molhando o solo e as construções, levando o lodo e desorganizando o interior dos imóveis. Quando a água desceu, arrastou tudo consigo. Quarteirões inteiros foram destruídos, sem contar das perdas mais chamativas, como a da Igreja Matriz (primeira imagem) e a Igreja das Mercês. O arrasto foi de tal força que vimos uma geladeira no alto de um poste, precariamente segura por galhos e folhas de palmeira. Os moradores atiravam seus objetos estragados nas vias públicas, o que em alguns casos equivalia à totalidade de suas posses. Um senhor despejou algo no monturo e comentou consigo: Onde eu tenho que ir agora, mesmo? Já nem sei mais... Passando pelas portas de dois restaurantes, vimos mesas penduradas nos ventiladores de parede. Alcançamos o hotel de propriedade de um amigo pessoal:

― Agora que não me hospedo neste pardieiro, dissemos subindo a escada e estendendo-lha mão.
― Si mudar de ideia, temos vagas de sobra, respondeu ele concluindo o cumprimento.

Quando uma cidade foi recentemente restaurada, ou seus moradores conservam-na sempre arrumada, limpa e pintada, conservando seus jardins e vias públicas, há quem costume compará-la a um presépio. São Luiz estava com esta feição. As imagens desta coluna, extraídas todas do sítio oficial da cidade, foram adrede selecionadas para expor a "pujança" arquitetônica que testemunhamos. Recupera-la-á, sem dúvida, mas haverá trabalho. O que mais choca é que ela descobriu sua vocação cultural e nela seguia firme, contagiando as cidades vizinhas e levando-as a reconhecer seu patrimônio humano. Em São Luiz formou-se um ciclo: o turismo impulsionou a manutenção das danças, das festas, do folclore de um modo geral. Contudo, o que atraiu a atenção dos turistas foi a preservação satisfatória destes elementos. Lembramos da valorização da pessoa e da promoção social decorrentes de tudo isso. Viva era sua Cultura, e ela incluímos entre os "vivos" da assertiva pombalina.

São Luiz é muito rica em festas, festivais e celebrações. Entre as festas, citamos a de São Sebastião, a de Nossa Senhora das Mercês, de São Benedito, de São Luiz Tolosa, de Santa Cecília, a do Saci e principalmente o Carnaval, que atrai quem prefere o festejo interiorano ao espetáculo das capitais. Os festivais anuais são o de marchinhas carnavalescas ― que estaria em curso ―, o de Música Junina, de Música Cristã, de Música de Raiz Sertaneja e a Semana da Canção, sobre a qual a colaboradora Débora Costa e Silva escreveu para o Digestivo. As celebrações mais importantes são as da Semana Santa, a do Divino Espírito Santo e o encontro das Folias de Reis. Toda dança típica que encontrou expressão na cidade mereceu ser estimulada. Portanto, lá pode-se conhecer a dança da Catira, a de Fitas, a da Baianinha, a do Balaio, a do Caranguejo, a do Sabão, a de São Gonçalo, a da Viuvinha, a Cavalhada, a Congada, as Folias do Divino e de Reis, o Moçambique, as Rodas de Violeiros, a Quadrilha e a Dança Caiapó ― cujo instrumento peculiar é a corneta de chifre. Confessamos ainda desconhecer boa parte destas manifestações. Os grupos de Moçambique permitiram-lhe outrora a classificação como "Capital da Zona Moçambiqueira Paulista". A atividade musical é sustentada por grupos diversos e justificada por São Luiz ser o berço do compositor Elpídio dos Santos (1909-1970).

Elpídio é o autor da música "Você vai gostar", valsa rancheira ― isto é, mais acelerada ― que ficou mais conhecida como "Casinha Branca". O sítio oficial do Instituto que leva seu nome possui gravações de diversas interpretações. O páreo é difícil e seria tarefa ingrata eleger uma. A música é constantemente atribuída a Renato Teixeira. Embora seja um de seus melhores intérpretes, não é possível imputar-lhe nem a coautoria. O compositor luizense ganhou notoriedade ao ser encarregado por Mazzaroppi da trilha musical de diversos de seus filmes. Posteriormente, várias duplas sertanejas e cantores gravaram suas canções, como Pena Branca e Xavantinho, Mato Grosso e Matias, Sérgio Reis, Almir Sater, Vanusa e Fafá de Belém.

Entre as colunas de nossos primeiros anos de Digestivo Cultural abordamos a lenda do lobisomem em texto próprio. Lembramos de São Luiz como uma das cidades onde a assombração deve ser incluída entre seus moradores destacados. Lá existe tal cuidado com os "causos" que foi fundada a Sociedade do Saci com a finalidade de resguardar esta figura do esquecimento e divulgar suas capetices. Há esta saudabilíssima atitude de recolher, registrar, conservar e garantir para a posteridade a Cultura em suas mais diversas manifestações. Ao pesar que tivemos de ver a casa de Elpídio interditada pela Defesa Civil seguiu-se o alívio de ver em pé e intacta a casa do sanitarista Oswaldo Cruz.

A primeira e mais urgente providência será a recolocação das pessoas em suas casas. Pelo que sondamos, muitos dirigir-se-ão ao terreno, refarão os limites e construirão uma base a partir da qual reiniciarão suas vidas. A tensão é grande, gerada pelo medo de chuvas que provoquem outro alagamento e novas perdas. Na primeira vez que visitamos a cidade, postamos no blog do Digestivo a respeito da hostilidade dos habitantes com quem podemos chamar "os turistas da catástrofe", aqueles que apareceram apenas para testemunhar a desgraça alheia, fotografar ou filmar e ir embora. Voltando no dia imediato, verificamos que a polícia militar determinou trechos de ruas por onde os transeuntes e os carros poderiam passar. Quem ultrapassasse o cordão era questionado e convidado a se retirar.

Observamos que, si o Poder Público faz sua parte, o voluntariado também representa poder equivalente. Percebemos, inclusive, que um operava contando com o outro na retaguarda, o que já aliviou a logística e a contratação de mão de obra. Em certos pontos, pôde-se trabalhar confiando na solidariedade. Ninguém deve ter-se preocupado, por exemplo, com a aquisição de roupas, alimentos e água potável, pois as doações lotaram o Centro, as Igrejas, e outros locais de distribuição. Estes postos passam a atuar onde o próprio Estado entrou em colapso, pois quem dependia da cesta básica fornecida, digamos, pela municipalidade, precisou socorrer-se em outro lugar, a exemplo do senhor que parou para descansar e trocou conosco "doi dedim de prosa". Parece exagero falar em colapso, mas pensamos no Fórum local, onde a água danificou a grande parte dos autos dos processos. Pensamos também no impacto ambiental decorrente do lixo que ou é transferido para terrenos marginais das estradas ou foi levado consigo pelo rio. Nova inundação será grave, pois as ruas estão lotadas de plástico e toda espécie de material descartado.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 11/1/2010

 

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