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Quinta-feira, 11/2/2010
Cultura do livro digital?
Vicente Escudero

A discussão sobre os livros digitais é literária, comercial ou agrega estas ideias? Pensei nessa questão enquanto assistia Steve Jobs demonstrar as maravilhas do iPad, o último lançamento da Apple, que pretende ser o matador do Kindle, além de imperador dos gadgets no quesito convergência.

Puxe lá do fundo do baú o nascimento do walkman. A música que era ouvida dentro das casas, num aparelho de som gigante, que podia no máximo acompanhá-lo enquanto dirigia seu carro, num toca-fitas com som de péssima qualidade, de repente começou a ser carregada num aparelho pequeno, pendurado na cintura da calça, para qualquer lugar. Então o Metallica nasceu, fez shows e mais shows com seus integrantes incitando os fãs a gravar suas músicas diretamente do rádio, em fitas cassete. Depois de quase quinze anos a internet surgiu, o formato de arquivos MP3 foi criado e os downloads começaram a derrocada da indústria da música. Daí os integrantes do Metallica começaram a discursar contra a pirataria. Alguém, lá no fundo da plateia, ouvindo "Enter Sandman" num iPod, virou as costas e foi embora do show. E o Metallica permanece tocando em eventos esgotados, pelo mundo afora.

Meio século antes de a Sony começar a revolucionar a forma de ouvir música, alguém teve uma ideia parecida para os livros. Gutemberg, o Steve Jobs da Mogúncia, criou os tipos móveis para impressão de livros em série, separando cada uma das letras em chapas individuais de metal, reutilizáveis, em vez das chapas fixas de madeira para a impressão de todo o texto. Qual o resultado disso? Mais livros, mais leitores, menos escribas. Cinco séculos depois, o mesmo Steve Jobs afirma que se inspirou em aulas de caligrafia para criar as fontes dos softwares no primeiro Macintosh: decies repetita placebit. Os escribas agradecem.

Essas mudanças repentinas nas formas de reprodução da escrita e da música criaram o consumo em larga escala e não diminuíram a qualidade das manifestações culturais posteriores. Se a música e a literatura não pioraram (há quem defenda o contrário), resta saber por que ainda impera a resistência aos avanços. Os livros e os CDs têm um significado pessoal maior para o consumidor pela textura, inexistente no material digital? Ou será que essa textura refere-se ao papel moeda que para de cair na conta bancária dos intermediários?

O fim da indústria fonográfica atual é certo, na permanência da resistência dos consumidores em comprar música e do descaso dos governos em regulamentar os direitos autorais com rigor. Já para a indústria da escrita, especificamente as editoras, parece não haver a mesma dificuldade de ingresso no novo mercado do consumo digital. Enquanto os CDs foram quase exterminados instantaneamente com o surgimento do MP3, as editoras têm tempo suficiente para se transformar em produtoras de conteúdo digital, gastando a gordura da reserva de mercado dos livros técnicos e das compras governamentais. As escolas não vão aderir rapidamente ao modelo digital de ensino pela ausência de recursos e dezenas de outros motivos, os leitores também já deram sinais de que resistirão à mudança do suporte. Enquanto existirem, haverá suporte financeiro. A migração de suporte ocorrerá lentamente.

Parece estúpido, no mínimo, que em mais de dois mil e quinhentos anos de descobertas científicas da civilização ocidental, nossa forma de armazenamento do conhecimento para as gerações futuras não seja inteligente. Quantos incêndios não destruíram escritos de filosofia ou soluções de problemas de física? Quantos naufrágios não acabaram com romances, poesias e cartas que poderiam mudar o destino de civilizações? Imagine ― se você não for vestibulando ― se Camões não tivesse resgatado os escritos de Os Lusíadas do naufrágio do qual sobreviveu, na Costa do Camboja, em 1556? Quantos problemas como esses poderiam ter sido evitados com a utilização de uma forma de armazenamento perene?

Olhando através dessa extensa linha do tempo, é possível perceber como a resistência a modelos de divulgação em massa da cultura é mesquinha. Nos dois momentos em que a escrita e a música passaram a ser produzidas em larga escala, os mercados consumidores se tornaram cada vez maiores, aumentando proporcionalmente o lucro das empresas envolvidas na produção. Neste ritmo de mudanças, resistir corresponde a morrer. Conservadorismo é a causa mortis.

Nesse redemoinho de mudanças, pouco é esperado dos escritores e seu ofício. Com a digitalização dos livros e o contato direto com vendedores, a possibilidade de negociação aumenta. Embora o escritor possa perder sem o auxílio de um editor competente, a relação com os melhores leitores, em longo prazo, pode suprir essa ausência. O risco de desvalorização da literatura, armazenada em dispositivos que fornecem também arte visual, é um problema que está muito além de qualquer previsão razoável. Beowulf, poema escrito há mais mil anos, é a prova inconteste de que o cinema e as artes visuais são dependentes crônicos da literatura. A partir daí, alea jacta est.

Aguardo o lançamento do iPad para vender meu Kindle. Gosto do cheiro dos livros, de carregá-los, olhar para a estante abarrotada do meu quarto, suas tábuas entortando pelo peso excessivo. Imaginar que parte de meu conhecimento tem o mesmo peso de todos eles é desafiador. Como a tábua que resiste, impedindo a queda dos livros no chão, anseio suportar esse peso cada vez mais, até a tábua ceder. Contudo, gostarei mais ainda desses livros se permanecerem iguais, na tela de um iPad, guardados numa estante virtual, prontos para leitura a qualquer momento. Perderei peso, mas ganharei a elegância da leveza.

Vicente Escudero
São Paulo, 11/2/2010

 

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