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Segunda-feira, 8/2/2010
Simplesmente tive sorte
Daniel Bushatsky

Estou confuso! Não sei como começar esse artigo. Pensei em uma frase de efeito, de autoria de Janina Bauman, sobre ela ter escapado do Holocausto e Anne Frank, não: "Simplesmente tive sorte".

Outro começo atordoante também me ocorreu: 6 milhões de judeus morreram no Holocausto. Acho que deveria existir uma lei obrigando todos os artigos minimamente relacionados a Segunda Guerra Mundial a ter esse fato e esse número em nota de roda pé!

Porém, vou começar com a frase da homenageada do mês que passou, morta no último dia 11 de janeiro, com esplendidos 100 anos de idade, e que recebeu pouca atenção da mídia tradicional (1 página em Veja, por exemplo), mas que foi um exemplo de humildade e coragem: "Não sou uma heroína".

Humildade porque escreveu em seu livro de memórias que não é nenhuma heroína! E coragem porque, apesar de não ser nenhuma heroína, foi capaz de esconder 8 judeus em um anexo secreto durante 2 anos de ocupação nazista na Holanda, bem como guardar o famoso diário de Anne Frank durante a guerra, entregando-o a Otto Frank, pai de Anne, após o término do conflito.

Gostaria de saber quantos teriam essa coragem. Na certa, não muitos, até porque o anexo foi descoberto após a denúncia anônima de um "ser humano" a fim de receber uma recompensa financeira. Típico, não? Inclusive o dinheiro valer mais que a vida de alguém!

Essas reflexões que parecem tão fáceis de fazer e tão simples de seguir não são. Quanto tempo, caro leitor, você parou para pensar no incrivelmente grande número de 6 milhões de judeus mortos? E as razões disso? Há um povo pior do que o outro? Não, mas em vários países do mundo há uma tendência dos partidos de direita assumirem o poder. Sem comentar o massacre na década de 90 nos Balcãs, sob a idéia de pureza racial e limpeza étnica, e lembrando, também, os novos skinheads.

Mas será que ao ler os sofrimentos de Anne Frank não deveríamos sentir desprezo por qualquer tipo de discriminação e lutar contra ela?

Primo Levi fez importante declaração sobre o diário de Anne Frank: "Uma única Anne Frank comove-nos muito mais do que a quantidade infindável de todos aqueles que sofreram tanto quanto ela, mas cujas imagens permaneceram nas sombras. Talvez tenha que ser assim: se tivéssemos e pudéssemos experimentar o sofrimento de todos eles, seria impossível continuarmos a viver".

Só gostaria de saber se até agora alguém sabe quem é a homenageada do mês? Aposto que não. Temos a cultura de idolatrar somente quem faz o gol! Ninguém se importa se o goleiro defendeu um pênalti ou se o zagueiro tirou em cima da linha. O importante é ser um fenômeno!

Miep Gies estava certa de não ser uma heroína. Para isto teria que ter morrido por Anne Frank ou, talvez, matado 300 soldados inimigos, em uma encruzilhada, da mesma forma que o soldado alemão em Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino.

A história e a escola tradicional não reservam muito espaço para os pequenos heróis. Que pena! Há tanto para aprender com essas pessoas...

Não que não acredite na possibilidade de um garoto de Krypton, criado no interior dos EUA, tornar-se jornalista e depois salvar o mundo. Somente acho mais fácil cada um de nós ser um pouco Miep Gies. Não precisa colocar um desabrigado haitiano na sua casa, mas pequenos gestos seriam extremamente gratificantes e já dariam bastante resultado prático.

Não fazer piadas racistas. Dizer "com licença" para todos, não só para seus amigos e seu patrão. Não desmerecer ninguém pela roupa que está usando etc.

Essas poucas noções de cidadania deveriam estar disseminadas em todos os momentos. Temos uma falta de heróis, mas mais do que isto, temos uma falta de caráter.

A lição que Miep Gies nos dá é justamente que precisamos construir melhor a nossa personalidade. Opiniões diferentes, sim! Genocídio, jamais!

Vale um pequeno parêntese : no museu da Anne Frank (Anne Frank House) em Amsterdã há um jogo interativo, onde a plateia vota sobre assuntos polêmicos, como o uso de véu nas escolas francesas ou o casamento homossexual. A ONG que promove isto chama-se: Free2choose e é impressionante como as respostas que você acha que seriam óbvias, não são. Há também um retrospecto de todas as respostas e elas variam de público para público. O mais impressionante é que naquele auditório pode estar sentado, ao seu lado, alguém com uma opinião contrária à sua, mas nem por isso um quererá matar o outro.

Não sabia começar, mas sei terminar. Simplesmente tive sorte de ler o que Otto Frank escrevia quando lhe enviavam cartas questionando sobre como os horrores do Holocausto começaram e se disseminaram. Ele não só tentava responder da melhor forma possível, como sempre tentava terminar todas as suas cartas com uma frase. Vou terminar da mesma forma e acho que Miep Gies concordaria. Nela o conceito do pequeno herói está implícito e, assim, não vejo prejuízo em citar mais um pequeno herói, com caráter e personalidade: "Espero que o livro de Anne tenha uma influência permanente para o resto de sua vida, e que trabalhes dentro do possível e com o uso de suas capacidades, para a união e a paz".

Daniel Bushatsky
São Paulo, 8/2/2010

 

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