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Quinta-feira, 1/4/2010
Como se vive uma vida vazia?
Roberta Resende

Em que pese todo o auê a respeito do filme argentino que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro (O segredo dos seus olhos), tenho que dizer que não gostei tudo isso do filme. Ele é muitíssimo bem-feito, sem dúvida nenhuma. Prende a atenção, é bem filmado. O que me incomodou não está aí, na parte técnica. Tampouco na trama principal. Explico. A história principal é boa, forte, é capaz de prender-nos e de mostrar-se verossímil. A narrativa que corre por baixo, o crime ocorrido no passado, contudo, é que me desagradou. Soou-me norte-americano demais, tanto em sua temática quanto no abuso de alguns recursos. Explico-me novamente.

Benjamín Espósito é funcionário de um fórum em Buenos Aires; trabalha em um gabinete judicial que concentra também funções investigativas. O gabinete comporta um juiz titular mais antigo e uma juíza assistente, novata, uma jovem e bela mulher por quem Benjamín se enamora (apaixona?). Acontece um crime violento e Benjamín, chamado para atuar no caso, acaba se envolvendo mais do que profissionalmente com alguns de seus personagens ― principalmente o viúvo e o executor do crime.

Em paralelo, Benjamín é correspondido em seu interesse pela juíza, mas nunca se declara. O crime que buscam desvendar os une, trabalham juntos pela mesma causa, passam perigos juntos, mas não tratam, em nenhum momento, do assunto da atração mútua, que permanece restrita aos olhares que trocam.

Há um momento da investigação, contudo, que se aproximam por demais do perigo. É bom lembrar que a história se passa na década de 70, época em que a Argentina vivia uma ditadura cruel, que "sumia" com os opositores do regime sem pestanejar. Essa mesma força podia ser usada também para calar qualquer um que desagradasse uma autoridade, caso de Benjamín, que tinha um desafeto na polícia. Não há outra saída para Benjamín a não ser deixar Buenos Aires, mudar-se para o interior. A juíza poderia ficar, era "uma Menendéz Hastings", seu pai estava avisado do perigo, ela seria protegida ― e aqui entrevemos a nossa América Latina, onde alguns são mais cidadãos que outros. E eles se separam.

A vida de Benjamín, no presente, é olhar para aquele ponto fixado há 25 anos e se fazer perguntas. O crime foi desvendado: a partir dos olhares que o assassino deitava para a vítima, Benjamín chegou à autoria, e percebendo a perversão nesse mesmo olhar, a juíza levou o autor à confissão. Mas Benjamín não desvendou como o viúvo, Ricardo Morales, fez para preencher "uma vida vazia". Morales não pôde viver o seu grande amor porque sua esposa foi brutalmente assassinada. Mas e ele, Benjamín, por que não viveu o algo que sentia pela juíza? Nunca o nomeou, nunca o soube nomear nem para si ― faltou-lhe, por muitos anos, uma letra para completar-lhe o sentido do que nutria por ela, conforme a metáfora de que se vale a película. Por que Sandoval, seu colega de repartição, morreu em seu lugar, deixando para ele a vida (vazia) para ser vivida?

Como se vive uma vida vazia é a pergunta que o alimenta, que não lhe sai da cabeça. Foi para respondê-la que viveu, que escreve um romance sobre o passado. E, ao terminá-lo, consegue a letra que faltava para ressignificar o que sentia pela juíza.

Esse percurso narrativo é inteligente, charmoso, reúne elementos atraentes: romance, investigação, destino, passado, amores não vividos, escrever para entender-se; as perguntas postas são instigantes e universais, pertinentes a todos os seres humanos, argentinos ou não, sul-americanos ou não. Os atores são sobretudo carismáticos ― (a produção não se arrisca muito, escolhe o rosto mais conhecido do cinema argentino na atualidade, o já popular Ricardo Darín).

O que incomoda, no entanto, é a temática e o tom conferidos à história que se entremeia à narrativa principal. Trata-se, o crime, de estupro seguido de morte de jovem e bela mulher, feliz em seu recente casamento. O filme trabalha incessantemente com a imagem chocante da moça morta, nua, ensanguentada e muito machucada, em contraponto à fotografia em que aparece sorridente. A cena é trazida à baila repetidas vezes, sempre a partir de cortes abruptos na sequência do filme, retomando a atenção/tensão da plateia. A tara sexual do homicida também é intensamente explorada ― é percebida pela juíza (que se lança como isca) e a usa para obter-lhe a confissão. E o que dizer, então, da norte-americaníssima solução encontrada pelo viúvo para viver a sua vida vazia?

Sob esse aspecto, a meu ver, o filme decepciona. O cinema argentino vinha ganhando respeito e admiração mundo afora exatamente por ousar contar histórias simples, cotidianas, de maneira sedutora. Ostentaria uma maneira diferente, nova, criativa de fazer cinema. Diferente de nós, brasileiros, que ainda fazemos teses sociológicas para tentar explicar nossa sociedade injusta e desigual, mas também diferente dos norte-americanos, do cinemão hollywoodiano, onde qualquer homem comum tem que virar herói para figurar em uma película, onde o mal tem que ser extremo para se distinguir do bem.

No entanto, o crime que persegue Benjamín em seu passado reúne exatamente os ingredientes pelos quais são obcecados os norte-americanos, para quem o mal se encarna sob a forma de crimes sexuais e precisa ser banido, perseguido policialmente, ou revidado em moeda igualmente violenta, torturante.

Confesso que preferia ver o cinema argentino valendo-se de outros recursos. Poderia ser outro o crime, outras as circunstâncias, o mote principal se sustentaria sem o apelo proporcionado pelo estupro seguido de morte, pela vingança lenta e fria. Será que precisamos ― agora até os argentinos (!), tão ciosos de suas particularidades ― copiar nesse grau a cultura norte-americana? Não terá sido fácil agradar a Academia, com a reunião desses elementos?

Há, não tenho dúvida, outros crimes para serem contados, outras maneiras de preencher nossas vidas, que facilmente podem ser vazias, inclusive de criatividade.

Roberta Resende
São Paulo, 1/4/2010

 

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