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Quinta-feira, 4/2/2010
A arqueologia secreta das coisas
Elisa Andrade Buzzo


foto: Sissy Eiko

Quem passa pela feira de antiguidades desfila com a superioridade do tempo presente ― eu estou no aqui e no agora, este é o momento mais importante, evoluído e moderno que poderia existir ―, mas se inclina reverencioso diante da arqueologia de cada objeto mínimo. Não é um crime de lesa-majestade expor à luz do sol a vida íntima das casas, as coleções raras já sem dono ou sem interesse por parte de seus descendentes? Espero revelações de uma feira de antiguidades para aclarar as minhas ― nem tão velhas assim ―, mas os objetos todos viram o rosto e reluzem muito em um sol impossível na Foire aux jambons em Quinconces, esta que dizem ser a maior praça da Europa.

Aqui e ali a poeira é um luxo conquistado em meses, anos, séculos de sótão ou porão. Mas também se pode supor que a passagem dos carros dos expositores faça subir o cascalho e a fina areia branca do solo da praça, e recubra com mais uma camada de partículas os tampos das mesas, os armários, os rádios, os carrilhões, a vidraria, os inúmeros bibelôs de porcelana repousados de forma displicente em caixas, as revistas seriadas com desenhos de mulheres em vestidos longos de babados... Que encanto objetos de antiguidade exercem nestes passantes, que observam, mas não compram? É o que diz em voz alta um dos antiquários: só há quem passeie pelos estandes, nada de clientes. Talvez a beleza da (aparente) inutilidade destes objetos sele encontros inusitados para muitos. O charme dos sobreviventes rejeitados traga sentimentos nobres, como a compaixão. Testemunhas silenciosas, eles resistiram ao tempo. Ao menos até aquele momento.

Essa memória renitente das coisas que passaram já se torna risível para mim, sendo que nem mesmo posso recitar com fidedigna clareza um único diálogo de minha infância, qual o último sabor de sorvete que comi. Qual foi o último plano de Hiroshima, meu amor, e onde exatamente me sentei para assisti-lo no teatro? Mesmo que haja um vigor momentâneo nos objetos e nos acontecimentos, eles estão condenados a essa inexatidão que o tempo se encarrega de recobri-los? E assim sua natureza está fadada a ser diversa daquela que a originou. Assim como a cadeira que um segundo dono irá lixar será outra, o som do carrilhão em outra sala entoará de outra forma, ainda que a matéria inicial esteja lá, concreta, até o momento em que for estilhaçada em pequenos pedaços aleatórios de entulho.

Aliás, é nas caçambas que se vê o desapego pelo que era estima, necessidade premente, puro consumismo, talvez. Basta uma estacionada na calçada para se deparar no decorrer dos dias com as quinquilharias relegadas. Transbordando. E dos objetos pessoais que ainda mantemos, por vontade ou sem refletir, que será deles quando não estivermos mais aqui? Algo vai resistir, que significado eles terão ou deixarão de ter?

Imersa em um pó acinzentado, os dedos sujos, tenho vontade de jogar tudo para o alto. Não importa mais que algo relevante se vá, o que quero é me livrar deste mofo, desta desorganização e falta de espaço para o novo que se avizinha. As lembranças adormecidas aguardam o dia do despejo sem reclamar, até que um desejo brutal aparece, e surge a vontade de arrumá-las. O desespero dura pouco. Volto à estaca zero. Cuidadosamente vou avaliando cada caixa e seu conteúdo de papéis, averiguo a usabilidade de cada objeto. É um dia em que estou resoluta a encher os tonéis de reciclagem do Pão de Açúcar.

Dúvidas perpassam este tipo de arrumação em que são devassadas estantes e gavetas fechadas há anos. Se eu não joguei fora isso até hoje, por que fazê-lo agora? Eu posso precisar disso amanhã e irei me lamentar muito por ter jogado fora. São lembranças que se eu não guardar, quem mais irá fazê-lo, exceto eu mesma? Não vai adiantar nada guardar estas coisas, se eu nem lembrava delas é porque não fazem falta, não servem para nada. Portanto, caso eu as tivesse guardado e precisasse delas, de nada adiantaria, porque ou elas sequer existiriam para procurá-las, ou, se lembrasse delas, eu não me lembraria onde elas estariam.

À medida em que vou encontrando raridades como lápis de cor antigos, cadernos de desenhos, brincos autocolantes, papéis de carta etc., vou me regozijando por ter guardado estas coisas, e também me envergonhando sem saber o porquê. Quem sabe, por que eu fazia/tinha estas coisas? Se eu não tivesse feito certas coisas, eu seria assim? Que porcentagem do que sou há nestas peças esparsas? O que em mim há disto? O sentimento vai se invertendo ao passo em que avisto manchas amareladas, cheiro de há muito guardado que não haverá modo de sair. São as marcas inalienáveis do tempo. Irritada com a quantidade de miudezas que se acumula, para as quais tento colocar uma ordem, me coloco diante de mais alternativas. Jogar fora resolverá? Não será passar o problema adiante? Desfazer-me? Refazer-me?

Digo que daqui pra frente só quero ter o essencial, como um monge numa montanha, dizer o que vou me lembrar, que mais nenhuma palavra seja inútil e mal pronunciada... Quero mudar de casa, trocar de pele e de camisa, ser esquecida, mas estes objetos fazem o favor de submergir esporadicamente. Lembranças do que foi, rastros que não se apagam, juras malsucedidas. Não os vendo, dou e jogo ao vento. Até me esquecer e fazer novas promessas, eleger outros relicários.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 4/2/2010

 

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