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Sexta-feira, 26/2/2010
Palavrão também é gente
Ana Elisa Ribeiro

Não sei qual deles veio primeiro: o nome de certa parte do corpo do macho, especialmente quando em riste e bem agressiva; o apelido ofensivo à profissão atribuída à mãe de alguém; ou a interjeição tão suficiente que se diz quando qualquer categoria de coisa acontece. Essa interjeição designa a mesma mãe profissional, só que recém-saída do trabalho de parto. Não sei mesmo qual desses xingamentos aprendi primeiro. Também não me recordo quem foi meu professor ou professora. O que considero é que foi tudo sempre muito útil. Às vezes melhor até (e mais barato) do que terapia.

Meus pais não falam palavrão. Minha mãe vai morrer com a boca limpa. Meu pai, quando bêbado, arremete contra alguém (em geral algum time de futebol) qualquer coisa que lembra uma palavra de baixo calão, mas nada que chegue a horrorizar quem está por perto. Então só posso ter aprendido a falar palavrão "na rua", como se diz (como se só a rua fosse o lugar dos acontecimentos mais baixos). Dado que minha lembrança mais antiga de palavrão vem lá dos meus anos escolares, acho que foi lá, na escola, que aprendi os primeiros balbucios ofensivos e, mais importante, aprendi a usá-los, em caso de necessidade. Há pessoas que sequer esperam a necessidade aparecer. Homens, em geral (desculpem os mais educados), utilizam xingamentos em situações diversas, inclusive para cumprimentar amigos.

O motivo desse esforço de memória é que, há poucos dias, mais uma vez, presenciei uma discussão toda envolvida em pompa e circunstância, na sala de reuniões de professores de uma escola de ensino médio: adotar ou não certo conto de determinado escritor importante brasileiro para alunos do primeiro ano. Assim que percebi o assunto em pauta, acionei minha planilha em que registro, na lembrança, quantas reuniões desse tipo já presenciei em minha carreira (pouco rodada) de professora, em todos os níveis de ensino. Parei de contar assim que a discussão mais acirrada começou.

Lá pelas tantas, alguém pediu minha opinião. Prefiro mantê-la guardada nesses casos que podem gerar polêmicas gratuitas, mas já que me acionaram, lá vou eu. Fui objetiva: Acho que certos riscos não valem a pena. O escritor é importante, o texto é bom, a literatura é maravilhosa, mas se adotarem o conto, estarão adotando também a encrenca que se seguirá. Antes de ensinar certas literaturas, é preciso dar cursos para as famílias dos alunos. Como isso não vai acontecer, peço apenas que não me convoquem para a reunião de pais que se seguirá à adoção dessa peça literária.

Logo em seguida a discussão continuou em tom mais alto. Parte das pessoas argumentava sobre a importância de ensinar literatura brasileira sem omitir autores importantes, outra parte complementava dizendo que a escola precisa ousar, especialmente uma escola federal daquele porte e com aquela autonomia. De fato, isso é um alívio para professor que acredita na profissão, nas pessoas, no futuro, na educação e gosta do que faz. Outra ala da reunião dizia que comprar certas brigas é bobagem, que os alunos não teriam maturidade para entender aquele conto, que os pais reclamariam dos palavrões, que os evangélicos procurariam a diretoria da escola etc. Nesse momento, um conveniente colega me telefonou e tive de sair da sala para resolver problemas em outro corredor.

O que é palavrão? Olhe no Aurélio. Olhe o Houaiss. Vá à Wikipedia. Busque no Google. Garimpe em sua memória e faça sua interminável lista. Palavrão para mim é pouca coisa. E eles não me horrorizam, a não ser que estejam muito carregados de contexto. No entanto, confesso que me sobressaltam bem menos pessoas que não os utilizam a torto e a direito.

Em certa escola em que trabalhei, enfrentei praticamente sozinha (era uma escola privada, diga-se de passagem) uma reunião de pais convocada por conta de um livro adotado na disciplina Literatura. Tratava-se, à época, de Distraídos venceremos, do poeta curitibano Paulo Leminski, que ainda não havia caído em nenhuma lista de vestibular. Hoje, Leminski faz parte do cânone e talvez os pais dos alunos pensem duas vezes antes de reclamar na diretoria. Naquele momento, foi um escândalo que uma professora sugerisse aos alunos um livro do qual fazia parte um poema que tratava de amor, mas usava a palavra... bosta. Sim, investigue Distraídos venceremos e procure um palavrão. Está lá a palavra bosta, no poema "Merda e ouro". Aposto uma grana alta que se Leminski tivesse escrito cocô ou fezes não teria me trazido tantos problemas.

Os pais, em discursos inflamados, reclamavam do palavrão imposto pela escola aos pequenos e indefesos garotos da sétima série. Mal sabiam eles que aqueles adolescentes já me haviam ensinado palavras muito piores e bem mais malcheirosas do que bosta. E agora, na reunião mais recente, deparo eu com palavra menos pastosa, mas também causadora de arrepios por aí: pau.

Mais uma vez, professores muito qualificados paravam suas atividades diárias para discutir, entre outros assuntos mais válidos, se o conto de Sérgio Sant'Anna, em que a palavra pau surgia intumescida e estriada, deveria ser indicado a alunos do ensino médio. O tema era a carta, esse objeto excêntrico da comunicação passada, mas as palavras vinham junto de um ato sexual descrito em verbos, adjetivos e substantivos chocantes.

Tratei logo de disparar meu contra. Não é caretice, não é moralismo, é apenas "deixa disso". Se são ali pelos trezentos alunos e se todas as famílias fossem tradicionais, seriam seiscentos pais para enviar bilhetes e pedidos de reunião para a diretoria. Reunião custa caro. Qualquer empresa séria sabe disso. Nas escolas, reunião é fichinha. Pai e mãe de braços dados tentando defender a cria das palavras do mundo são uma cena chatíssima para quem quer exercer a docência seriamente.

Como se ensina literatura na escola? Como escapar não apenas de Leminski, mas principalmente de Gregório de Matos? O livro do Cereja, um dos mais adotados do país e gratuitamente distribuído pelo governo, deu um jeitinho. Ao estudar Barroco e Gregório de Matos, só aparecem lá os poemas religiosos do poeta "boca do inferno". Adolescente esperto fica cabreiro: "ué, mas por que então chamam esse cara de boca do inferno, se ele mais parece um santo?". Aí lá vêm os professores com histórias parecidas com aquela da cegonha ou a outra, a da sementinha que papai pôs na mamãe. A sorte é que é raro um adolescente ter esse tipo de esperteza.

Pai e mãe (coisa que eu e meu marido também somos, frise-se) são engraçados. Eles parecem não verificar nunca que tipo de filme seus filhos assistem na TV. Será que os adolescentes só passam a ver Big Brother depois que fazem 18 anos? Outro dia o Pedro Bial, aquele ex-jornalista que virou apresentador, deu uma bronca nos BBBs pedindo que eles maneirassem no vocabulário chulo. Será que rolou reunião de pais nos bastidores da Globo?

É claro que é preciso proteger a juventude! É lógico que os jovens precisam conhecer artes. É evidente que o professor precisa ser bem-preparado. O negócio é que escola também é lugar de palavrão, já que o contexto emoldura tudo. A puta de A bela da tarde não é a mesma que cobra cinquinho na rua Guaicurus (por favor, leitor, substitua o nome da rua de BH por alguma correspondente em sua cidade, certamente isso será possível). O pau do Sérgio Sant'Anna não deve ser o mesmo do serial killer que anda driblando a polícia civil na Região Metropolitana de BH. Veja só o que é a ironia. Ironia é quando a gente usa a palavra no sentido contrário do que ela realmente quer dizer. A explicação não é só essa, mas vamos facilitar, né? Então posso chamar alguém de "santa", quando tudo leva a crer que eu quis dizer "quenga maldita".

É preciso proteger o professor profissional. Nunca entrei na sala do dentista dizendo a ele, com indicador em riste, como ele deveria atuar. Jamais fui ao médico para lhe dar ordens sobre meu tratamento. Nunca ensinei o padre a rezar a missa. Mas da educação escolar todo mundo entende, já que são excelentes na educação que dão em suas próprias casas.

Nota do Editor
Leia também "Palavrões".

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 26/2/2010

 

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