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Sexta-feira, 12/3/2010
Com ventilador, mas sem educação
Marta Barcellos

Era a economia, seria estupidez ignorar. Meu entusiasmo com o Brasil ― o país que insistia em marejar os olhos da gente na hora do hino nacional, embora jamais fosse acertar-se no mundo ― dessa vez tinha bases sólidas. Bastava olhar os indicadores sociais e econômicos. Mais que isso: bastava sair às ruas, no esplendoroso verão carioca, para confirmar o comércio fervilhando, todos ganhando um dinheirinho com algum trabalho e gastando no supermercado lotado. Na fila do táxi, em um shopping da Barra da Tijuca, pude observar duas famílias, da cor brasileira, aguardando a vez com caixas de ventiladores e um aparelho de ar-condicionado. A vez deles havia chegado. Mais um pouco, daria até para comprar um carrinho.

Esta era a nova e reluzente realidade, eu me comprazia. Superada a fome, conquistadas a estabilidade e a democracia, estávamos saindo daquele terrível estado em que viver é sobreviver. Poderíamos evoluir até para o estágio da arte ― e no quesito cultural imagina o que virá pela frente, pensei, se a riqueza existia mesmo antes, convivendo com a pobreza financeira. Que espetáculo de país seremos, já somos, e quase tive vergonha de parecer ingênua de tanto otimismo.

Em nenhum momento de meus devaneios, fique claro, ignorei o problema da educação. Ele estava lá, gigantesco, mas sua solução parecia próxima, como desdobramento natural do crescimento econômico e da vontade política. Bem ou mal, já tínhamos todas as nossas crianças na escola. Os investimentos inevitavelmente seriam canalizados para a área. Foi mais ou menos nessa época, de entusiasmo exacerbado, que recebi a notícia: M. provavelmente repetiria o ano na escola. Novamente. Fiquei atordoada e acabei sendo mais incisiva com a sua mãe, que trabalha como empregada em minha casa, do que me prometera ser em relação ao assunto. "Mas não tem jeito? Não existe recuperação ou segunda época na escola pública? As aulas de reforço não adiantaram?"

Sempre me senti responsável por M., uma menina muito falante e inteligente, hoje com 10 anos. Talvez pela forma como a conheci.

Depois de sete anos em São Paulo, um lugar onde descobri que esforço e mérito podem ser, sim, mais importantes que relacionamento e "berço", eu procurava um imóvel para comprar no Rio de Janeiro. Após algumas visitas, o corretor nos mostrou um apartamento especialmente encantador, ainda mobiliado, embora o dono tivesse se mudado há um ano para sua fazenda em Minas Gerais. Quando passamos pelas dependências de serviço, lá estava M., sentadinha e compenetrada, ao lado da tábua de passar roupa, esperando pacientemente pelas tranças que a mãe lhe fazia no cabelo.

A cena ficou registrada em meus pensamentos, provavelmente porque a menina aparentava ter a mesma idade de minha filha. Tudo fez mais sentido quando meu marido comentou, nos dias em que fechava a compra do apartamento, que o proprietário incluíra nas negociações um pedido inusitado: que contratássemos a sua empregada. Bastaram alguns dias no apartamento novo para eu ter dúvidas sobre qual tinha sido nosso melhor negócio: o imóvel ou a empregada, perfeita.

Extremamente reservada, a mãe de M. raramente levava a menina para brincar com a minha filha, apesar dos convites. Aprendi a respeitar a distância que ela preferia ter conosco, e logo observei a sua preocupação em mostrar à criança "o seu lugar" naquela família "rica", onde não teria direito aos mesmos brinquedos ou regalias. A situação me incomodava, eu queria mostrar o quanto as duas eram crianças iguais, e quando fui matricular a minha filha na pré-escola perto de casa consultei a diretora sobre a possibilidade de colocar também M. na instituição, particular. Não só não havia descontos ou bolsas de estudo, como a escola desaconselhava o meu gesto, apesar de reconhecer a boa intenção. "Nossa experiência é que a criança acaba tendo problemas, por pertencer à outra classe social", ela falou. "Ainda mais se ela não mora com vocês."

Outras pessoas também me dissuadiram, mostrando a responsabilidade que eu pretendia assumir sem ter um mandato da mãe da menina para isso. De fato, eu sequer conseguia influir em sua educação, que incluía por exemplo palmadas, apesar de meus discursos cuidadosos questionando efeitos e eficácia do recurso "educativo".

O fato é que desisti do plano, acabei não fazendo nada de concreto e, como se diz por aí, de boas intenções o inferno está cheio. E foi com a queimação dos infernos que me senti ao perceber a vida escolar de M. degringolando. Não tinha sido de repente; eu é que estava ocupada demais para notar. Começou no ano anterior à alfabetização, quando minha filha já era estimulada na escola a conhecer as letras, treinar a coordenação motora fina, ouvir histórias na biblioteca. Enquanto isso, M. passava o dia brincando na creche da comunidade. No final da alfabetização propriamente dita, a menina não conseguia ler e escrever, e teve que repetir o ano.

A mágica da alfabetização me intimidou a participar do processo, inclusive em relação à minha filha. Não queria apressá-la, denotar ansiedade, ensinar errado. Mesmo assim, em um ambiente de total estímulo, na escola e em casa, ela acabou formando as primeiras sílabas sozinha, triunfante, nas férias entre a pré-alfabetização e a alfabetização. Fiquei orgulhosa, e imaginei que a mágica também aconteceria, ao longo do ano, com M. Não aconteceu.

Aqui preciso fazer um parêntese. Meu pai era professor e tenho um respeito absoluto pela profissão. Só fui perceber como a relação entre pais e professores podia ser diferente daquilo que incorporei como modelo depois de observar as reuniões da escola. Na época, atribuí a arrogância de algumas mães ao fato de seus filhos serem crianças ainda pequenas. Eram os seus bebês e elas estavam inseguras. Mas acabei definitivamente chocada quando, certa vez, marquei uma reunião separada com a professora, por andar preocupada com uma suposta dificuldade de minha filha em suas primeiras continhas de matemática. Antes que eu tivesse chance de demonstrar a humildade das minhas intenções ("Devo ajudar na lição de casa?"), a professora apressou-se em justificar-se, jurou que a nota da prova dela tinha sido boa, e que não havia quaisquer problemas em seu aprendizado. Ela estava completamente na defensiva. Meu deus, pensei, quantas mães chegam ali fazendo acusações e ameaças?

No ano seguinte deste episódio, coloquei minha filha em um colégio maior, onde imaginei que professores não ficassem acuados diante de mães esnobes. M. continuava na escola pública, um ano atrasada. Volta e meia, não havia aula. A professora está doente. A escola está sem água. O feriadão foi esticado. A professora está fazendo um curso e vai faltar uma semana (?). Em 2009, por causa da gripe suína, a quantidade de aulas reduziu-se ainda mais ― ao contrário dos colégios particulares, não houve reposição. Logo percebi também que a mãe de M. não gostava de ir às reuniões de pais, apesar de eu afirmar que este era um bom motivo para ela faltar ou chegar atrasada ao trabalho (o que nunca acontece). Nas reuniões, de alguma forma, ela sentia-se responsabilizada pelo mau desempenho da filha. Um misto de culpa e impotência parecia paralisá-la diante do assunto, já que ela própria mal sabe ler e escrever. "M. não quer nada com estudo, é preguiçosa", começou a repetir.

Fiquei imaginando como a relação de poder, naquela escola pública, devia ser oposta à dos colégios particulares que tratam pais como o cliente que sempre tem razão. Assim como a mãe dondoca ameaça o colégio que não consegue educar o seu pestinha, havia as professoras que empurram para as mães analfabetas a culpa pelo fracasso da educação na escola. Claramente, a educação formal depende de uma parceria entre família e escola, e M. estava em dupla desvantagem em relação à minha filha. E pensar que, de tempos em tempos, esbarro com alguém "esclarecido" defendendo teses sociais que pressupõem a igualdade de oportunidades para as classes baixa e alta no Brasil...

Mas quem sou eu, uma jornalista de generalidades sem conhecimentos profundos sobre educação, para fazer alguma coisa a respeito. Só o que me ocorreu, diante do cenário descortinado, foi me oferecer para pagar aulas particulares para M.. Dessa forma, descobri a existência de um sistema de apoio de "explicadoras", comum em comunidades carentes. A menina passou a frequentar a casa de uma "explicadora", que fora dona de creche na favela de Rio das Pedras e dava aulas para outras duas crianças.

Imaginei-a uma professora, que cumpriria o papel de uma mãe zelosa de classe média, acompanhando lições de casa e cadernos escolares. A nova classe C emergente, diante da precariedade do ensino público e da limitação de sua própria formação, talvez encontrasse nessa figura salvadora da pátria a solução para a educação de seus filhos. Além de ventiladores e ar-condicionado, agora podia pagar "explicadoras" (minha empregada fez questão de fazê-lo). Mas eram apenas devaneios, novamente, vim perceber depois.

"Não tem mais jeito? Não existe recuperação ou segunda época?", perguntei em dezembro, diante da perspectiva de ver M. perder mais um ano escolar. "A professora mandou um dever de férias. É uma apostila, que ela fez junto com a explicadora. Em janeiro, ela vai à escola entregar o dever e fazer uma prova, mas a professora acha difícil passar de ano." A tal apostila estava repleta de erros, muitos deles frutos diretos da orientação da "explicadora", que desconhecia conceitos como fração ou ordem alfabética. Isso foi o que descobri durante as "aulas" (não sou professora, portanto as aspas são obrigatórias) que dei para M., nas férias, quando refizemos juntas o dever e estudamos para a prova. M. passou de ano.

Em 2010, vou tentar acompanhar ao máximo a vida escolar da pequena e prolixa M., das tranças compridas e dos olhos espertos. Mas não sei o que posso fazer pelo Brasil, além de tentar votar em algum político mais comprometido com a educação. Não consigo evitar o desânimo. Mesmo com alguma vontade política e algum investimento, os filhos da classe C emergente têm um enorme desafio pela frente.

Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha de leite.

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 12/3/2010

 

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