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Segunda-feira, 1/3/2010
A interpretação dos chatos
Daniel Bushatsky

Em dezembro passado escrevi um artigo com o sugestivo título de "Choro da verdade". Ele, basicamente, fazia uma relação despretensiosa, em meros 14 parágrafos, não muito longos, sobre os patentes problemas de infraestrutura do Brasil e o choro do presidente Lula ao saber da vitória brasileira para ser sede das Olimpíadas. Tentei, mas não sei se consegui ― alguns leitores disseram que sim ―, passar a ideia de que o comportamento do presidente e sua equipe geravam uma onda de ufanismo e escondiam os vários problemas de infraestrutura do país através de notícias tendenciosas e manipuladas.

Após cadastrar no Digestivo o artigo, enviei-o para vários amigos e um, em especial, me disse que "não obstante não saber qual é seu público alvo ou seu objetivo com esse artigo, achei-o insatisfatório e pouco profundo".

Não me dei ao trabalho de responder. Qualquer pessoa que se expõe, seja escrevendo, dando palestras ou aulas está sujeita a receber críticas positivas e negativas. Espera-se que as positivas massageiem o ego e que as negativas sejam construtivas.

Essa crítica não era para ser construtiva porque quem não entende qual é o público alvo de um artigo, bem como não identifica seus objetivos, deve voltar a assistir às aulas de interpretação de texto na escola. Foi uma crítica chata, sem objetivos, que simplesmente me fez pensar: "o que eu fiz para ele?".

Mas, como acabei levando na esportiva, essa crítica acabou sendo construtiva porque fui estudar a interpretação de texto e me fez refletir o que faz uma pessoa chata e o que a difere da legal. Em uma rápida busca na internet, em um site de nome Guia de Mulher, achei a definição de interpretar: "o ato de interpretar tem primeiro e principal objetivo a identificação da ideia principal". Meu amigo não conseguiu.

Outras dicas são tiradas de manuais de interpretação: ler atentamente o texto, só responder perguntas após a segunda leitura, identificar as formas de discurso, o tipo de texto etc. Fácil perceber que meu crítico não seguiu nenhuma das técnicas acima. Pelo contrário, mandou dois e-mails me criticando negativamente, não sugeriu algo construtivo e no primeiro deles confessou que só havia lido por cima e que iria reler depois.

Também, era de se esperar: segundo reportagem da Folha de São Paulo, de 27 de fevereiro de 2010, os alunos de escolas públicas do terceiro colegial têm nível de oitava série.

Mas não sou só eu quem sofre com os comentários impensados de leitores. Certa vez li um belo artigo, descrevendo o ato de vender livros e como é difícil atender os clientes "cricas", que não só não vão comprar nada, como ainda ficam reclamando da loja, do produto, do vendedor ― como se eles estivessem obrigados a estar lá e como se não vivêssemos em um país com inúmeras opções de escolha.

Um leitor, indignado com a descrição, rebelou-se e enviou seguidos comentários ao autor do artigo, doutrinando-o sobre o direito do consumidor e o cartel dos livros. O autor deu-se ao trabalho de explicar que o artigo não tinha como objetivo (como se não fosse óbvio) tratar de tais assuntos. Simplesmente estava falando sobre os chatos do nosso dia a dia e, no máximo, da arte de vender.

Novamente estávamos à frente de um leitor que não conhece as regras de interpretação de texto ou estava simplesmente querendo aborrecer.

Como concordo com Stéphane Mallarmé, poeta francês, quando diz que "definir é matar; sugerir é criar", não vou estereotipar o chato. Isto é pessoal. Quem é entediante para mim, pode não ser para você.

Somente para me inspirar, fui buscar a definição do Aurélio, que define o chato como aquele que é maçante. Maçante, por sua vez, o que aborrece e entedia.

Porém, as pessoas que não criticam construtivamente e simplesmente buscam criar uma atmosfera negativa quanto a determinado assunto, poderiam repensar suas posturas, até para não passarem por incultas.

Observar a realidade e fazer comentários pertinentes ao tema são atributos cobrados desde o colégio e não o fazer gera tortuoso caminho para a construção de conversas, das mais fáceis às mais complexas.

É como discutir futebol, sem usar as palavras certas, referências adequadas e entender o modus operandi da discussão. Só o chato discutiria futebol usando expressões jurídicas.

Há vários tipos de chato: há o certinho, o pontual, o que fala tudo muito baixinho e ninguém consegue entender (estes são os que eu mais odeio), o que reclama de tudo ― mas todos são chatos porque deixam a atmosfera ruim. Eles só fazem isso porque têm uma má interpretação da realidade, não conseguindo seguir o padrão da sociedade ou tentando se diferenciar com qualidades não reconhecidas ou aceitas. Esta é a minha sugestão, e não uma definição de quem é chato.

Meu amigo é o chato "crica". Tudo sempre podia estar melhor, mais bem feito, mais bonito etc. Perguntem se ele trabalha, escreve ou produz qualquer tipo de coisa. Não! Seu trabalho é falar que os outros não fizeram tão bem feito.

A verdade é que os chatos se parecem com um tablóide inglês. Chamam a atenção de forma bizarra e só conseguem ser populares pelo tempo de uma manchete!

Assim, se você tiver um amigo chato, relaxe. Identifique em qual tipo de chato ele se encaixa e faça como eu: não envie mais artigos para ele e fale, educadamente, que mesmo interpretar sendo uma arte, ter faltado a aula de português fez uma grande falta na formação dele.

Ele não vai entender nada e vai te achar um chato, mas você fez seu papel de amigo!

Daniel Bushatsky
São Paulo, 1/3/2010

 

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