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Quinta-feira, 11/3/2010
Haiti, o cisne negro, já virou branco
Vicente Escudero

* Lá pelos idos de 1995 tive o primeiro contato com essa bacia das almas chamada Haiti. Um grupo de freiras do colégio católico em que estudava estava de partida para visitar o país, nesse período que seria o início do segundo governo de Aristide, resguardado por uma intervenção militar liderada pelos EUA e autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU. Lembro-me da líder do grupo passar pelas salas pedindo aos alunos que orassem por sua segurança e pelo restabelecimento da ordem no país, o mais pobre das Américas. A conversa marcou bastante pela estranha solenidade de uma viagem que fazia parte da rotina itinerante da atividade assistencial desempenhada pela congregação da escola, e pela aparente preocupação de todas elas. Afinal, qual a razão de concederem explicações a um bando de garotos e garotas entre seus quatorze e quinze anos sobre o que faziam ou deixavam de fazer? O tom era de despedida e algum amigo dessa época poderia ter dito: "Acho que elas pensam que não voltarão. Vieram se despedir..."

* Não me recordo se todas elas voltaram. A lembrança deste país que atemorizava essas mulheres, portadoras das mais nobres intenções, despertou meu interesse. Pensava que o Haiti estivesse incrustado no meio da América Central, em vez de dividir uma ilha com a República Dominicana, no Caribe. Não conseguia imaginar a maior miséria da América dividindo a mesma geografia de praias paradisíacas. Até hoje este bloqueio mental resiste. O pouco que descobri era sobre a instabilidade política da ilha desde a chegada de Colombo, em 1492, passando pelo domínio francês do final do século XVII, a divisão da ilha depois da independência do Haiti ― com o nascimento de seu vizinho, a República Dominicana, em meados do século XIX ―, até os seguidos regimes ditatoriais, falsas democracias e revoltas do século XX. Por ironia do destino, o país mais pobre das Américas também foi o primeiro no mundo a abolir a escravidão, em 1794.

* A missão das freiras era de magistério. Terminada a construção de uma escola em Porto Príncipe, capital do Haiti, elas trabalhariam como professoras para a metade analfabeta da população. A maioria delas dominava mais de dois idiomas e estava preparada para cumprir a tarefa num ambiente hostil, politicamente volátil e extremamente violento. Só não contavam com a temporada de furacões. Os alunos não tiveram sequer a oportunidade de conhecer a nova escola, antes que elas retornassem para o Brasil.

*A deusa Fortuna não parece favorecer o Haiti, esteja onde ela estiver. Imaginar que um país assolado pela miséria, violência e desgoverno político ainda pode sofrer catástrofes naturais como furacões, inundações e terremotos leva os mais desesperados a buscar respostas em opiniões e fatos nada confiáveis, como na crença de que um pacto vodu realizado entre os escravos ocupantes da ilha com o diabo, no início do século XIX, para acabar com a dominação francesa, amaldiçoou o Haiti e o colocou sob o polegar de Deus. Desde então, a ilha dividida ao meio é separada entre os problemas eternos dos haitianos e a boa condição econômica do país vizinho, a República Dominicana. O alívio causado pela resposta religiosa a vários problemas seguidos, incapaz de determinar suas causas, contrasta com a obscuridade da análise científica dos fatos que oprimem o país há tanto tempo. Embora as dificuldades políticas e sociais possam ser estudadas em retrospecto para serem solucionadas, os problemas envolvendo catástrofes naturais, principalmente furacões e terremotos, não encontram resposta científica capaz de impedi-los ou amenizar seus efeitos.

* É neste ponto que entram as Ciências da Incerteza professadas por Nassim Nicholas Taleb. Catástrofes naturais imprevisíveis podem ser classificadas, segundo sua doutrina, como cisnes negros mandelbrotianos, eventos que podem ser considerados até certo ponto, mas cujas propriedades não podem ser completamente decifradas, mesmo numa análise retrospectiva dos acontecimentos, e para os quais é impossível produzir cálculos. As catástrofes naturais que atingem o Haiti há décadas, embora sequenciais, são completamente imprevisíveis, além de constantemente explicadas pelo determinismo, gerador de superstições como a do pacto vodu e, por que não, de uma vertente historicista baseada na análise retrospectiva do infortúnio sequencial do país em todas as suas esferas. Ambas são respostas platônicas e nenhuma delas é capaz de explicar com precisão as causas de inúmeros problemas num país territorialmente minúsculo.

*O Haiti tornou-se um país tão sui generis que nem mesmo a teoria do cisne negro de Taleb é capaz de abarcar todas as situações imprevisíveis, de impactos violentos crescentes, causadas por catástrofes naturais ocorridas nas últimas décadas. O último terremoto que vitimou mais de duzentas mil pessoas é o mais grave de toda a história no país, numa sequência de inundações, furacões e terremotos imprevisíveis. Ora, se o mundo para Taleb pode ser dividido em Extremistão e Mediocristão, com os ocupantes do primeiro se adaptando aos eventos imprevisíveis de impacto relevante, e os do segundo vivendo de acordo com a tirania do coletivo, caso os moradores do Extremistão não sejam capazes de se adaptar aos cisnes negros, naturalmente, serão destruídos. Os haitianos não desenvolveram as mesmas técnicas para suportar catástrofes naturais como os japoneses e seus prédios com amortecedores. E as organizações internacionais não tiveram disposição para estruturar o país, reduzindo os efeitos de todos os eventos naturais, nem de contribuírem para seu desenvolvimento, durante toda a segunda metade do século XX. Quem acreditaria num resultado desses? A filantropia das humildes freiras pode ser mais eficaz do que a ONU. Só nos resta torcer para que a deusa da Fortuna favoreça o Haiti.

Nota do Autor

Leia também A Lógica do Cisne Negro, de Nassim Nicholas Taleb

Vicente Escudero
São Paulo, 11/3/2010

 

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