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Quarta-feira, 10/3/2010
A excelência do espírito
Guilherme Pontes Coelho

São trinta quilômetros sobre esquis. A prova, esqui cross country para mulheres, estilo clássico, largada em massa. O dia, 27 de fevereiro de 2010. Olimpíadas de Inverno de Vancouver, Canadá. Na massa de atletas, a favorita, a norueguesa Marit Bjoergen, que já havia conquistado cinco medalhas nestes jogos olímpicos, e que desde 2005 não brilhava tanto; e a polonesa Justyna Kowalczyk, uma medalhista em ascensão. Mesmo quem não é familiarizado com esportes de inverno, como nós, brasileiros, por motivos óbvios, jamais se esquecerá do quão extasiante foi ver aquelas mulheres lutando pela medalha de ouro numa das provas mais glamorosas dos jogos de inverno.

Vinte e cinco quilômetros já haviam sido vencidos. A cinco quilômetros de terminar a prova, Bjoergen tinha uma vantagem de 1,9 segundo sobre Kowalczyk, que, mesmo sendo a campeã mundial da prova em 2009, alimentava poucas expectativas no público de vencer a norueguesa que já ostentava cinco medalhas em Vancouver, das quais três, de ouro. Mas essa é toda a graça: superação é vencer a si mesmo vencendo o mais forte. E nos cinco quilômetros restantes, sobre e sob neve, elas disputaram milésimo por milésimo a vitória. No sprint final, virtualmente empatadas, quem estivesse assistindo a prova estaria se descabelando, independente de para quem fosse sua torcida.

* * *

Fico impressionado com a fragilidade do corpo humano. Nós não somos os mamíferos mais fortes, nem os mais rápidos. Talvez os mais inteligentes. É certo que, entre os primatas, o Homem é o que tem o maior pênis, eis aí um motivo de orgulho viril; mas, ainda assim, jogados numa jaula um chimpanzé de 60 quilos e Lou Ferrigno, com aquele físico da época em que estrelava a série Hulk, não sinto em informar que o chimpanzé sairia vencedor, empalitando os dentes com um dos braços do Ferrigno. (Não imagine a cena, foi tudo uma metáfora.) A nossa vantagem sobre os demais familiares do reino animal é a dita racionalidade. Que se resume assim: eu não corro como um guepardo, mas nunca vi felinos pilotando Hayabusas.

Em comparação direta com os demais animais, sempre levaremos desvantagem. Mas o esforço que o ser humano faz para superar essa fragilidade inata é inebriante. Não falo do esforço pelo esforço, porque isso é vazio. Esses recordes de apneia estática são um exemplo disso. Permanecer submerso por vinte minutos, apenas para permanecer vinte minutos submerso e ser listado no Guinness Book, é uma demonstração ordinária de poder. Não, não falo disso. Falo de Gabriele Andersen-Schiess, e não me importa que isso seja clichê. Nem um pouco. A imagem da fundista suíça terminando em frangalhos a maratona nas Olimpíadas de Los Angeles, 1984, ainda hoje me assombra.

Assombra tanto quanto Nadia Comaneci, nas Olímpiadas de Montreal, 1976. Quanto Michael Phelps, Olímpiadas de Pequim, 2008. Usain Bolt, Campeonato Mundial de Atletismo, Berlin, 2009. Cesar Cielo, Campeonato Mundial de Esportes Aquáticos, Roma, 2009.

Todas essas conquistas não são meramente físicas. São, acima de tudo, conquistas do espírito. São demonstrações do que os gregos chamavam de arete, a busca da excelência. Esportes individuais, sobretudo os de combate, são cheios de exemplos de superação, de vitória sobre si e sobre o oponente quando, aparentemente, a derrota está para chegar.

Como quando Ronaldo Souza, o "Jacaré", em 2005, na final do Campeonato Mundial de Jiu-Jitsu, sofreu uma chave-de-braço de Roger Gracie, o que lhe rendeu um braço quebrado ― e mesmo assim venceu o campeonato, pois se recusou a sinalizar desistência. E mesmo quando a derrota chega, há, paradoxalmente, uma espécie de vitória inabalável, subjetiva, que jamais deixará o atleta. Isso é muito bem ilustrado pelo judoca brasileiro Flavio Canto, nas semifinais do Panamericano de 2007, quando enfrentou o americano Travis Stevens. Canto se manteve de pé, lutando, mesmo com duas fraturas no cotovelo direito. A vitória foi prosseguir.


Lev Tsimring © (http://www.levtsimring.com/main.php)


O esporte é fascinante. O espírito esportivo é fascinante. Eu tenho ídolos. Ídolos não são as pessoas que gostaríamos de ser. Querer ser outra pessoa é anular a si mesmo, uma das várias maneiras de se suicidar e permanecer funcionalmente vivo. Ídolos são quem nos inspiram por suas ações e quem nos lembram da paradoxal posição do ser humano na Terra. Tão pequenos, tão gigantes. Embora minha galeria pessoal de ídolos conte com escritores, compositores, pintores, aventureiros; embora qualquer parágrafo de Moby Dick me seja sobrenatural e qualquer verso de Cartola me seja sublime, os ídolos esportivos atingem a excelência de espírito pela via mais direta e chocante: a ação.

Nós, mesmo pequenos, temos tanto poder ― do qual só temos consciência depois de ver um Lance Armstrong pedalando, ou um Anderson Silva lutando, ou uma Marta driblando.

* * *

A alguns metros da linha de chegada, Justyna Kowalczyk ultrapassa Marit Bjoergen. Medalha de ouro. E eu, que nunca vi neve na vida, lamentei não ter uma bandeira da Polônia em casa para sacudir, gritando: "É ouro, p@#$%!".

Guilherme Pontes Coelho
Brasília, 10/3/2010

 

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