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Quarta-feira, 28/11/2001
Autistas é que são eles*
Paulo Polzonoff Jr

Daniela Mountian

Mais uma vez — para variar — os intelectuais torcem o nariz para o programa Casa dos Artistas, o reality show do SBT, que se firmou como o maior fenômeno da televisão brasileira nos últimos tempos. A idéia vocês já conhecem: artistas de segundo escalão foram colocados numa casa luxuosa, com todo tipo de conforto, e a única obrigação deles é permanecerem juntos durante longos 45 dias. Missão quase impossível e, crêem os psicólogos, muito, mas muito mais difícil mesmo que o global No Limite 3, que agora parece tão-somente um monte de gincanas à moda do Passa & Repassa, que agitava os pré-adolescentes no início da década de 90.

Por mais inteligente que o leitor se julgue, ou seja, por mais que sobre sua cabeceira se acumulem Wittgenstein, Hegel, Kant e outros tantos nomes europeus, de sintaxe quase ininteligível, ainda assim Casa dos Artistas fascina porque mostra algo que os filósofos não conseguiram, com seus supercérebros, compreender: a intrínseca maldade humana.

Em Casa dos Artistas a maldade tem um atrativo que, em tempos de desvalorização do dólar, nem é tão grande assim. Ainda mais se levarmos em conta que os “artistas” em questão, apesar de serem de segundo escalão, não são coitadinhos, que precisam da soma de R$ 300 mil para sobreviver. Aliás, se você já assistiu ao Casa dos Artistas — e você já assistiu, tenho certeza — , deve ter percebido que Supla, o filho da prefeita de São Paulo e do senador Eduardo Suplicy, é constantemente alvejado por seus colegas por ter uma vida supostamente abastada.

Casa dos Artistas está sendo comparada a um zoológico humano. É uma expressão pedante, própria daqueles que nos colocam, seres humanos, como uma espécie imune a comportamentos tipicamente animais. Sem hipocrisia (ou com o menos de hipocrisia possível), pensemos no sexo que, dizem, está sendo feito e refeito sob aqueles pesados edredons, mesmo que as câmeras não cessem de filmar. Zoológico humano, dizem os especialistas em mídia (sic), como se não fosse a coisa mais natural do mundo, nestes tempos de liberação sexual pós-década de 70, homens e mulheres sentindo-se atraídos uns pelos outros e... tchan, tchan, tchan. Aqui outro trunfo deste Casa dos Artistas: jogar na nossa cara aquilo que tentamos esconder a tanto custo: somos, sim, animais, com direito a nome científico e tudo. Que me auxiliem os biólogos, caso esteja enganado.

Dentre estes animais enjaulados, nenhum causa maior comoção não só entre as menininhas aspirantes a herdeira de família quatrocentona paulista, mas também entre marmanjos que admiram o jeito falsamente despojado dele, Supla, agir. Escrevi falsamente despojado mas confesso que não consigo ver muita falsidade nas falas chulas de Supla. Ele, entre todos, parece ser o mais Homo sapiens, não importa de que Era.

Não foi à toa, portanto, que Supla caiu nas graças de Sílvio Santos e do público desde sua primeira aparição na “novela da vida real”, como reza, sabiamente, o slogan. Somente uma zebra pode tirar-lhe os R$ 300 mil em prêmios. Fofocas de dentro da Casa dizem que ele pretende gastar todo este dinheiro em instrumentos musicais — alguém duvida?

Antes de tecer comentários sobre Supla, contudo, vale pensar na atitude de Sílvio Santos, que tem se mostrado, principalmente depois que a tal Marluce Dias assumiu a Rede Globo, ser o maior gênio da televisão brasileira. A maioria das acusações contra o Homem do Baú parte do princípio de que ele não vê a televisão como um meio de educação para o povo, e sim como apenas um entretenimento rentabilíssimo. Esta é uma discussão para os teóricos. Aqui cabe perceber que, como empreendedor (palavrinha cara aos empresários brasileiros), Sílvio Santos é mestre e merece, sim, ser copiado. Até quando percebe já o avanço da idade e a falta de um herdeiro legítimo para capitanear seus negócios quando a derradeira velhice lhe pousar as mãos, mostra-se arrojado como um jovem de 23 anos (ou melhor: mais arrojado que um jovem de 23 anos). Informações dão conta de que Sílvio Santos ofereceu ao Boni, ex-manda-chuva da Globo, nada menos que 30% do SBT, para que ele comande a Organização. Isso, em termos reais, significa uma bolada de R$ 450 milhões.

A idéia da Casa dos Artistas, plágio ou não, foi uma tacada de mestre de Sílvio Santos porque, mesmo correndo o risco de ter a atração embargada pela justiça, com a exibição dos primeiros capítulos ele simplesmente tirou da Rede Globo, que detém os agora desvalorizados direitos sobre o Big Brother holandês: o fator originalidade. Mesmo que a Globo leve o Big Brother a cabo, ele jamais será novidade. Há ainda outra variante que faz de Casa dos Artistas algo louvável do ponto de vista estratégico: somente mesmo o SBT, com um plantel que deixam os intelectuais corados pelo suposto (?) baixo nível, como Ratinho, Hebe, Carla Perez, Gugu e quetais, poderia ter escalado atores, modelos e gente-famosa-quase-anônima (como Bárbara Paz) para se exporem ao ridículo por 45 dias. Um exercício de imaginação para o leitor dá a dimensão da genialidade da idéia: imagine a mesma atração, sob a batuta Global. Será que Vera Fisher, Taumaturgo Ferreira, Reinaldo Gianechini, Glória Maria e outros astros deste quilate se submeteriam à prova? Possivelmente não. Restaria então à Vênus Platinada a opção de colocar anônimos (e, não se esqueçam: se são anônimos, é por um bom motivo) numa casa. Uma atração como a Casa dos Artistas, nas mãos de Marluce, cheira a fracasso.

Supla — O cantor, compositor, showman, suposto clone de Billy Idol e ainda filho do senador Eduardo Suplicy com a prefeita de São Paulo Marta Suplicy Supla é o queridinho da Casa dos Artistas. Ele já começou o programa causando polêmica. Na primeira semana, ameaçou cair fora, sob alegação alguma. Simplesmente quase se foi. Sabe-se lá por quais motivos esotéricos, ficou. O Ibope do SBT agradeceu, claro.

O que mais agrada aos espectadores quando vêem Supla aparecer na tela, seja acompanhado da namoradinha Bárbara Paz, seja cantando suas horripilantes músicas com o também desafinado Alexandre Frota, é a indecisão que toma conta do moçoilo. Afinal, aos 35 anos, teria Supla finalmente atingido a maturidade que é própria da idade? Provavelmente não.

Uma pesquisa realizada pelo portal da Agência Estado na última semana revelou que Supla é o preferido da Casa dos Artistas. Ele tinha 60% da aprovação popular. A desconhecida Bárbara Paz chegou em segundo lugar, com 14%. As outras “unanimidades” que a pesquisa revelou foram a de que Alexandre Frota é o preferido entre os entrevistados para ser eliminado (53%), seguido pelo chorona Mary Alexandre (aquela do tal do Vavá), com 14%.

Enquanto isso, em outro canal, a Globo também tenta pegar canora em pseudopolêmicas para alavancar seu caidaço No Limite. Semana passada, a dona-de-casa e aspirante a escoteira na Ilha de Marajó, Cláudia Lúcia, cometeu a indelicadeza de, em plena semana em que se comemorava o Dia da Consciência Negra, dizer que não criava suas filhas para casarem com negros, porque não conseguia imaginar seus filhos com cabelos “sarará”. Achar que é uma opinião isolada, a da dona-de-casa e ex-modelo, de abdômen bem definido mas cérebro nem tanto, é tapar o sol com a peneira. Todo tipo de ONG que esteja envolvida com a questão negra sabe que o povo brasileiro é racista, sim. O que chama a atenção, neste caso, é que No Limite é um programa editado semanalmente, e não diariamente, como a Casa dos Artistas. O editor do programa podia muito bem cortar a fala da participante, o que evitaria, para a sempre correta Globo, a polêmica. Assim sem querer (!), a declaração foi ao ar e causou o maior rebuliço. Deputados do PT escreveram uma carta de repúdio. Juízes querem processar a participante que, inclusive, pode ser expulsa, numa atitude de extrema hipocrisia.

Durante toda a semana, a Globo tratou o caso como uma notícia qualquer. Não se preocupou com possíveis ranhuras em sua imagem. Isso leva a crer, para os otimistas, que a emissora está mudando, preocupada em discutir os valores enraizados na sociedade brasileira. Balela. A polêmica renderá (e os números desta semana mostrarão isso), sensível aumento no Ibope do capenga No Limite 3. Eis o xis da questão.

Cláudia Lúcia, por sinal, poderia muito bem virar tese pelas penas dos chatos intelectuais das universidades, caso os intelectuais tivessem o cuidado de assistir a este tipo de programa televisivo. Na semana retrasada, por exemplo, a eliminada do No Limite foi uma tal de Janaína. Não vai ganhar nada, a não ser a lembrança de quase ter se afogado, de ser pulado de pára-quedas, e de ficar marcada como um verdadeiro zero à esquerda para seu grupelho de gincanas escolares. A eliminação de Janaína, contudo, revela muito, mas muito mas que isso.

Menina pobre, do subúrbio do Rio de Janeiro, Janaína (assim, sem sobrenome, como tantos zé-ninguéns) sempre se mostrou a mais fraca das competidoras. Ela trabalhava oito horas numa faculdade particular para estudar de graça à noite e, nas propagandas que antecederam o programa, dizia que seu sonho era se tornar promotora, ao que acrescentava: “Um sonho bem alto, eu sei”. Era óbvio que logo seria eliminada. Ao contrário de seus companheiros, não estava acostumada com a ambição a qualquer custo, esta filosofia que rege as relações da classe-média. Estava mais preocupada em não atrapalhar do que em ser realmente útil, pois assim lhe fora ensinada. Participou bravamente de várias provas, inclusive comendo macarrão com minhoca. Não sabia nadar e um dia quase se afogou. No dia em que tinha de pegar caranguejos com a mão, fraquejou. Poucos se deram conta de que as lágrimas de Janaína, eliminada, não eram lágrimas de quem perdia os R$ 300 mil em prêmios, o que permitiria a ela realizar o sonho de ser promotora, talvez. Era o choro de alguém acostumado à exclusão, em qualquer grupo que fosse, até mesmo na longínqua Ilha de Marajó, no Pará. Janaína está longe de ser miserável. Há quem diga até que é “elite intelectual do país”, porque cursa uma universidade; mas também está longe de fazer parte desta sociedade que faz qualquer coisa para ganhar seus R$ 300 mil, seja para comprar uma academia de ginástica (destino do dinheiro caso caia nas mãos de Cláudia Lúcia), seja para comprar instrumentos musicais (nas mãos de Supla), seja para comprar uma casa (nas mãos de Bárbara), ou seja até mesmo para ajudar a uma criança hospitalizada (como diz Alexandre Frota). É pena que os intelectuais não se debrucem sobre o caso Janaína/Cláudia Lúcia, mas isso até que é compreensível. Na torre de marfim das universidades, o v-chip bloqueou definitivamente a Globo e o SBT, e os intelectuais estão condenados para sempre a assistir a documentários sobre Schoppenhauer, de onde tiram suas profícuas — e inúteis — teses.



* A palavra autista está sendo usada de modo pejorativo,ao se referir à Casa dos Artistas. É pena, porque se trata de doença psiquiátrica grave. Não é intenção deste colunista denegrir a imagem dos que sofrem de autismo. O título é somente uma brincadeira com o comportamento pouco sociável dos intelectuais com relação ao referido programa.

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 28/11/2001

 

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