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Segunda-feira, 8/3/2010
Quem acredita em Sobrenatural?
Carla Ceres

Todo leitor compulsivo adora livrarias, mesmo sabendo que costumam ser assombradas por espíritos inquietos. Há o poltergeist (espírito infantil, endiabrado), o obsessivo (permanece acorrentado a um mesmo setor, mas persegue e atormenta quem dá ouvido a seus monólogos), íncubos e súcubos (seres sedutores, inconvenientes), almas penadas à procura de autoajuda e umas poucas aparições realmente malignas.

O frequentador comum mal chega a perceber suas presenças, mas o leitor compulsivo tem prática. Reconhece-os de imediato e desenvolve estratégias para livrar-se deles. Meu truque favorito, antes de chamar a gerência, é recorrer ao diabo. Quando percebo uma assombração no meu encalço, vou para o setor de ocultismo, pego um livro sobre demonologia, de preferência um que tenha ilustração na capa, e começo a folhear. Funciona melhor que as carrancas do rio São Francisco, aquelas figuras de proa pavorosas, usadas para afastar maus espíritos. O ente perturbador assusta-se e desaparece.

Sim, o demônio ainda gera medo e, em consequencia, interesse. A prova é o sucesso da série Sobrenatural que tem garantido a vice-liderança do SBT em horário nobre. Preferida entre os jovens, ganhou o prêmio de Melhor Série de Ficção Científica/Fantasia no People's Choice Awards 2010, superando concorrentes como Lost e Heroes.

A história dos irmãos Sam (Jared Padalecki) e Dean Winchester (Jensen Ackles), que viajam pelos Estados Unidos, caçando seres sobrenaturais, mescla terror, humor e pitadas de romance. Durante quatro temporadas de sucesso, os irmãos conquistaram o público com seu charme e cenas cada vez mais violentas de combate ao mal.

Além de utilizar os conhecidos vampiros, fantasmas e lobisomens, os roteiristas recorrem a lendas urbanas, ao Alcorão, à Bíblia, à mitologia grega, ao folclore e à religião de vários povos para abastecer sua galeria de vilões. Manipulando com total liberdade suas fontes, os escritores modificam seus monstros de domínio público e inventam novas formas de aniquilá-los. Espíritos podem ser espantados com tiros de sal; metamorfos, criaturas malignas capazes de assumir a forma de qualquer pessoa, têm aversão à prata; fantasmas deixam de assombrar quando salgamos e queimamos seus restos mortais.

A quinta temporada, que passa com legendas, no Warner Channel, deve estrear dublada no SBT, este mês. A emissora de Sílvio Santos vem fazendo um bom trabalho de divulgação. Disponibiliza informações e vários episódios da quarta e da quinta temporadas em um blog sobre a série.

Em uma das enquetes do blog, 41% dos fãs afirmam acreditar nos contos de Sobrenatural. Trinta e cinco por cento respondem "Talvez!". Restam 16% que não acreditam e 7% sem opinião formada. Assim sendo, há muitos sustos a caminho. O principal vilão da nova temporada será Lúcifer (Mark Pellegrino) ― livre do inferno, comandando seus demônios contra o exército dos anjos.

Para complicar o malabarismo teológico e metalinguístico, surge um novo personagem: o autor dos livros com as aventuras dos irmãos Winchester. Ele seria um profeta que estaria, sem saber, escrevendo um novo evangelho, o Evangelho Winchester. Essa é dura de engolir e os roteiristas fazem piada a respeito. Aí está a chave para apreciar Sobrenatural, o humor.

Acontecimentos estranhos não faltam. Os dois irmãos já estiveram mortos. Sam ressuscitou e Dean foi arrancado do inferno por um anjo. Os dois fizeram sexo com seres sobrenaturais. Dean, com um anjo. Sam, com um demônio e um lobisomem fêmea. Dean torturou almas no inferno. Sam bebe sangue de demônio. O jeito é suspender totalmente a descrença, pois a quinta temporada trará os cavaleiros do Apocalipse e a procura por Deus.

Sem dúvida, Sobrenatural funciona bem como diversão. Seus demônios são fáceis de identificar pela cor dos olhos (totalmente negros, nos demônios comuns). Quando exorcizados, transformam-se numa fumaça negra que sai de forma espetacular, pela boca das pessoas a quem possuíram. Há dissidentes em ambos os lados da batalha. Assim a divisão entre bem e mal fica imprecisa. Sobram linhas tortas para o espectador decifrar.

Não é de hoje que a figura e a história do diabo vêm mudando. Nos primeiros séculos do cristianismo, acreditava-se que os demônios eram frutos de relações sexuais entre anjos e mulheres. Antes de ter chifres e tridente, o diabo já foi belo, já teve um arpéu (instrumento usado nas torturas da Inquisição), já foi até inseto.

Um ótimo estudo sobre a iconografia do diabo é o livro de Luther Link, O diabo ― A máscara sem rosto, da Companhia das Letras. Nesse ensaio erudito, baseado em obras de arte, textos sagrados e apócrifos, vemos as muitas formas que o mal assumiu devido a discussões teológicas, necessidades políticas e até falhas de tradução. Segundo o autor, foi graças a um desses erros que "Lúcifer" foi considerado o nome do diabo.

Uma outra virtude do livro são as numerosas ilustrações, em especial a da capa: um diabo alado carregando uma mulher nua às costas. Esse fragmento de pintura já me foi muito útil. Livrou-me de algumas assombrações em livrarias.

Nota do Editor
Leia também "Satã, uma biogafia".

Carla Ceres
Piracicaba, 8/3/2010

 

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