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Quinta-feira, 18/3/2010 A Onda, de Dennis Gansel Ana Seffrin Autocracia não significa corrida de carro em crateras. De origem grega, a palavra deriva dos radicais gregos "autos" ― por si próprio ― e "cratos" ― governo ―, havendo, de igual modo, derivações secundárias de significantes, com proximidades inefáveis às primeiras constituições de sentido ― "auto" de próprio e "kratia" de poder. A convergência de capacidades discursivas da matéria infiltra a exploração de um terreno histórico amplo. Com a parcimônia acostada aos olhos, autocracia denota um tipo particular político, onde o indivíduo ou grupo na liderança tem poder ilimitado para mudar as leis, se achar necessário. Imagine um professor perguntando a algum aluno um exemplo factível de "autocracia"; o Terceiro Reich, à primeira vista, é a resposta que está na ponta da língua, mas tratar-se-ia de uma temática repassada de modo reiterado nos bancos escolares, uma história de holocausto e deflagração de todo o tipo de horrores, menção de erros e culpas de "outros", não das gerações presentes. Alguém poderia salientar: "não é questão de culpa, é questão de responsabilidade histórica". Então outra indagação viria à tona e não calaria: outra ditadura seria possível na Alemanha? Para além dos acontecimentos que possivelmente poderiam desenrolar-se num país que há vinte anos dividia-se ideologicamente, pergunte-se: outra ditadura seria possível no Brasil? Achar-se diante da necessidade de discutir a questão é um tema por si só pesaroso e complexo; muitos responderiam que já vivemos em um Estado Democrático de Direito e que tal possibilidade não passa de uma petrificada constatação passada, não mais presente e atual, tendo em vista que "estamos acima disso". De outro modo, há a substancialidade decisiva em refletir sobre o que uma ditadura, para estruturar-se, necessita. Um Führer? Há títulos históricos equivalentes à nomenclatura de Adolf Hitler: Mussolini fora chamado de "Il Duce"; Francisco Franco de "Caudilho"; Getúlio Vargas de "Chefe Nacional". Em termos resumidos, precisaríamos, para a composição de uma autocracia, de um Duce, um Führer, um Caudilho ou um Chefe Nacional? O emblema autocracia e ditadura delimitam a existência de líderes? Tais proximidades levam-nos ou não a pensar em ideologia, controle, vigilância, nacionalismos ou insatisfação? Todos esses elementos são trazidos, com brilhantismo e astúcia, na produção cinematográfica alemã A Onda (Die Welle). O filme, dirigido por Dennis Gansel e estrelado por Jürgen Vogel, Frederick Lau, Jennifer Ulrich e Cristina do Rego, dentre outros ― atualmente, a jovem vanguarda geração talentosa de atores alemães ―, é um esboço de questionamentos sociais de pertinência absoluta e atemporal. É também um aprendizado sobre como podemos nos tornar guerreiros solitários. Rainer Wegner ― interpretado por Jürgen Vogel ―, professor de Ensino Médio, tem o dever de ensinar seus alunos sobre autocracia. Para tanto, seu curso irá se desenrolar no período de uma semana. Do desinteresse inicial daquela classe com características diferenciadas e peculiares ― desde o "nerd" inquestionável, passando pelo galanteador loiro até o "autista" ausente ― o professor lança um desafio, o desafio da união, recorrendo às fórmulas de ordem e disciplina enquanto padrões de vivência. Os alunos decidem que o próprio professor será o líder do grupo. A classe, em vista das ordens e instituições comportamentais, aos poucos consegue compreender o significado de unidade e união ― o sombrio poder da união. Raça, religião, cor de pele ou qualquer outra individualidade perdem categoricamente o interesse e os parâmetros de igualdade ensaiam-se como regras de vivência. Decidem, também, usar um uniforme ― concordando veemente na assertiva do quanto uniforme militares são grotescos ―, utilizando, todos ― com exceção de uma personagem que haverá de se rebelar contra esse sistema aparentemente deturpado ―, camiseta branca e calça jeans ― a fim de eliminar as diferenças sociais ou, até mesmo, comportamentais. Rainer consegue conquistar a simpatia dos alunos, tentando fazer valer um experimento com capacidade de explicar os mecanismos do fascismo e do poder. Seu movimento recebe o nome de "A Onda". Tal qual aquela constância marítima endurecida e relativizada pelos movimentos das marés, a experiência das águas desaba em um choque sem retorno. A produção é recheada de observações contundentes; desde jovens sobrecarregados em um exercício de autoindagação a respeito de possíveis infortúnios da vida ― "nada mais, aparentemente, vale a pena" ―, até os que percebem que o desejo da juventude contemporânea gira essencialmente em torno da diversão. O fio condutor dos personagens também permeia orientações em pensamentos próprios: o que "falta nas gerações é, nada mais, nada menos, do que um objetivo comum para uni-los". Em meio a uma série infindável de transtornos existentes dentro dos muros escolares ― desde casos de bullying (agressões verbais) até agressões físicas sorrateiras ―, e fora deles ― como, por exemplo, a palavra "Paris Hilton" ser a mais procurada no Google ―, o que parecia ser uma completa impossibilidade diante das circunstâncias ― um professor estimulado com os alunos, alunos discutindo amplamente questões de política ― torna-se o frenesi de uma energia surreal de "força pela disciplina" deflagrada. Não apenas por se tratar de uma produção única, o filme compensa pela belíssima fotografia e pelos jogos nos focos da câmera que, embora raros, consubstanciam o enredo em um relógio de proveniência distinta; você não sente o filme passar e os ponteiros são um jogo decisivo de vida ou morte. Como fenômeno de transcendência, denota a irracionalidade do poder nas discursivas contaminações de qualquer tipo de fascismo nos tempos passados, presentes e futuros. Rainer tentará romper com a propagação do poder e do fascismo disciplinar quando o jogo ficar sério, mas aí poderá ser tarde demais. O enredo é baseado em uma história real ocorrida na Califórnia, em 1967, em Palo Alto. Um professor norte-americano chamado William Ron Jones resolveu realizar um experimento em sala de aula: reproduziu estratégias utilizadas por ditadores ― sobretudo Hitler ― para demonstrar o quanto o poder de dominação das massas era de simples engrenagem. O resultado dessa experiência está traduzido em um conto literário de William, que foi capaz de tornar essa experiência uma completa orientação de violência. Também vale relembrar que o filme alemão contemporâneo é uma espécie de refilmagem americana de apenas 45 minutos, dirigida por Alex Grasshof, de 1981, também denominada The Wave (A Onda). Não é à toa que a música de abertura da produção alemã é justamente "Rock'n'Roll High School, dos Ramones ("Well I don't care about history, rock, rock, rock'n'roll high school, 'cause that's not where I wanna be, rock, rock, rock'n'roll high school (...)/ hate the teachers and the principal, Don't wanna be taught to be no fool (...) Fun fun rock'n'roll high school, Fun fun, oh baby"); uma atenção maior a essa composição leva a crer o quão emblemático o ambiente escolar pode ser e o quanto essa engrenagem é, naturalmente, emblemática. De todos os tipos de fascismos e pregações ideológicas existentes, é inquestionável a importância dessa produção cinematográfica, simetria daquilo que não podemos nos omitir enquanto labores da academia universitária. Essa conexão, em torno dos grupos ideológicos comumente tingidos e reconhecidos nas páginas da história ― Ku Klux Klan, apartheid, macarthismo, ditaduras latino-americanas, Hamas, Farc, nazismo, fascismo, marxismo, comunismo, anarquismo e a infinidade de "ismos" e "ias" antiprovidenciais ―, é uma conexão que, sobre a insígnia do ódio e da violência, torna seres humanos ventríloquos de discursos omissos de caracteres minimamente éticos e adequados à realidade social humanitária. Na medida em que se assume a tarefa de mostrar esse retrato, A Onda possivelmente é uma excelente averiguação desse flagelo. Para ir além Veja o trailer do filme Ana Seffrin |
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