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Segunda-feira, 29/3/2010
Glauco: culpado ou inocente?
Gian Danton

Até a década de 1980, nos casos em que maridos matavam suas esposas, os julgamentos acabavam sendo focados nas vítimas. Os advogados de defesa pretendiam mostrar que a vítima não prestava e, portanto, merecia ser morta. É o princípio da "legítima defesa da honra". A lógica era: quem merecia morrer já morreu, então vamos soltar esse pobre homem, que matou porque era o seu dever.

Uma aberração jurídica, esse argumento tem sido ressuscitado pelo advogado de defesa de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, assassino confesso do cartunista Glauco. A linha da defesa é que Cadu era um garoto feliz e carinhoso, que nunca revelou sinais de violência antes de começar a frequentar a igreja Céu de Maria, dirigida por Glauco. Depois desse episódio, ele teria se transformado em um monstro, um louco, que rezava para as plantas e não dizia coisa com coisa. O máximo que o pai do assassino, certamente orientado pelo advogado, admite sobre o filho é que, antes de Cadu ter contato com o chá do Santo Daime, ele era indeciso sobre a profissão que iria seguir. Fora isso, era um santo. O fato dele ser usuário de drogas, ter passagem pela polícia por tráfico, ter abandonado três cursos universitários e não ter qualquer ocupação não impede a defesa de pintá-lo como santo que virou demônio depois de entrar para a igreja dirigida por Glauco. Essa versão da história foi comprada pela TV Record e pela Veja.

A matéria da Record fez questão de começar a matéria sobre o assunto mostrando fotos de Cadu na infância, feliz e carinhoso com a família. Após a entrada na igreja Céu de Maria, as fotos escolhidas foram aquelas que distorciam seu rosto ou a imagem dele preso, como um animal sem raciocínio. De tempos em tempos, em momentos adequados, fotos do garoto feliz e carinhoso eram intercaladas pelas imagens de Cadu preso. Uma narração em off, dizendo que o rapaz mudou depois que entrou na igreja Céu de Maria, ilustrada pelas duas imagens contrastantes passam a informação melhor do que outra coisa. É como aqueles comerciais do antes e depois, sendo que nesse caso o sentido é oposto: se você for um santo, irá se tornar um louco assassino se entrar para o Daime.

A intenção é óbvia. Não é segredo que a Record pertence à Igreja Universal, a quem muito interessa criticar e, se possível, destruir uma igreja rival. Na lógica capitalista da Universal, toda outra igreja é uma concorrente e deve ser tratada como tal.

A revista Veja, que sempre se posicionou contra a liberação do chá aiuasca, tem comprado a versão do advogado com recibo e tudo. "Permitir que portadores de psicoses como a esquizofrenia bebam o chá da seita Santo Daime equivale a jogar gasolina sobre uma casa em chamas. Tudo indica que foi exatamente o que os seguidores da seita fizeram durante os três anos em que Cadu frequentou o local", diz a matéria publicada no dia 21 de março.

Glauco, como dirigente da igreja Céu de Maria, seria culpado pela situação: "Glauco foi, sim, solicitado a não mais ministrar o alucinógeno a Cadu ainda em 2007. Por descuido ou desconhecimento acerca do estado de saúde do rapaz, ele não atendeu ao pedido". Tanto a Record quanto a Veja dão a entender, embora não declaradamente, que Cadu teria cometido os crimes sob efeito do chá do Daime.

Resumo da ópera: quem deveria morrer, já morreu, agora vamos tratar o Cadu, única vítima dessa história.

Essa versão, no entanto, tem diversas falhas.

Para começar, a última vez que Cadu bebeu o chá foi no ano novo, quase três meses antes dos assassinatos. Não existe substância que permaneça no organismo por tanto tempo.

A outra linha de raciocínio é de que o chá teria despertado em Cadu uma esquizofrenia latente que o teria levado a fazer tudo o que fez. Para começar, ignoram totalmente o fato dele já usar drogas antes de entrar para a igreja Céu de Maria. Por que as drogas não despertaram a esquizofrenia?

Mas, mesmo que admitamos que Cadu se tornou louco após tomar o chá, a versão parece estranha.

Eu tenho um amigo esquizofrênico. Começou a frequentar a minha casa ainda muito jovem, pois queria ser roteirista de quadrinhos. Pressionado pela família, estudou desesperadamente para o vestibular, passou em primeiro lugar, mas acabou desenvolvendo uma esquizofrenia, já latente, que despertou por causa do stress. Desde então eu o tenho acompanhado, de tempos em tempos. Graças ao tratamento, ele não evoluiu para a fase mais severa da doença. Minha experiência com esse garoto me diz o seguinte: ele até seria capaz de matar, no meio de uma crise, mas não seria capaz de planejar um assassinato e depois planejar uma fuga. A pessoa com esquizofrenia vive numa tal situação de alheamento que mal consegue sair de casa. Não consegue pegar ônibus. Não consegue muitas vezes nem lembrar onde mora. Certa vez encontrei-o na rua, em crise, e tive que levá-lo em casa, pois ele não conseguia voltar sozinho.

O raciocínio de Cadu não é de esquizofrênico. Ele passou meses vendendo maconha para comprar a arma com a qual mataria Glauco. Escolheu a melhor arma, comprou bastante munição... planejou passo a passo os assassinatos. Após o crime, fugiu e passou horas planejando como fugiria. Sua ideia era roubar um carro, fugir para o Paraguai, ficar lá até a poeira baixar e depois voltar para matar a viúva de Glauco. Seguiu o plano à risca e só não conseguiu chegar ao Paraguai porque foi parado por uma patrulha, que percebeu que o carro era roubado. Preso, se nega a dizer quem lhe vendeu a arma. O delegado que o prendeu diz que ele parece mais um criminoso normal do que um esquizofrênico. O delegado que investiga o caso em Sâo Paulo diz que "Ele estava consciente. [...] Ele foi muito frio".

Tal frieza de raciocínio não é de quem sofre de esquizofrenia, mas lembra muito o comportamento de um psicopata, que sabe o que está fazendo e planeja passo a passo seus atos. Não é a primeira vez que um psicopata tenta se passar por doido para fugir da pena e continuar matando. Kenneth Bianchi, o estrangulador de Los Angeles, tentou convencer a opinião pública de que tinha dupla personalidade antes de ser desmascarado por uma psicóloga (um filme interessante sobre o assunto é O estrangulador de Los Angeles, de Chris Fischer).

A cobertura da maior parte da mídia, em especial da Veja, revela um raciocínio preconceituoso: o Daime é visto com maus olhos por ser uma religião de índios e seringueiros, de "gentalha". No caso da Veja, há o agravante da revista seguir a cartilha norte-americana, segundo a qual todas as substâncias devem ser proibidas, menos as que dão lucro para as grandes empresas do Tio Sam (como o cigarro).

No final, o preconceito e a visão deturpada devem prevalecer. Cadu será visto como um inocente santo transformado em demônio por Glauco e sua igreja. Provavelmente será inocentado e estará livre para matar a viúva do desenhista, como já disse planejar. Que Deus nos proteja.

Gian Danton
Macapá, 29/3/2010

 

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