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Quinta-feira, 25/3/2010
Os Blogs e o Espetáculo
Mariana Portela

O cadeado é um signo do segredo. Ele tranca, silenciosamente, o recôndito entre as páginas do diário. As confissões mais cruas, a nudez dos sentimentos, a brutalidade dos defeitos. Tudo estava protegido pelas chaves interiores do coração escritor. Durante séculos e séculos foi assim que o protagonista-autor lidou com suas inefáveis verdades.

O íntimo, hoje em dia, abriu as portas para o mundo. O particular atinge quem estiver interessado na leitura. Com o surgimento dos blogs, no final da década de 90, a privacidade perdeu seus contornos. As paredes sucumbiram ao exibicionismo. Os núcleos sigilosos possuem as portas abertas. As algemas da clausura estão enferrujadas. E o palco está inteiramente iluminado. Basta saber se haverá espectadores na plateia. Afinal, todos parecem estar mais preocupados com as suas próprias atuações.

Em pouquíssimos anos de existência ― o que dificulta muito uma bibliografia minuciosa do assunto ― a blogosfera cresceu em imensa escala. Acredita-se hoje que há cerca de 112 milhões de blogs em todo o mundo.

O que tantas pessoas podem ter a dizer? Será que existe uma distância tão grande assim entre nós? Precisamos manter vivos os pensamentos em procuras do Google? "Já que não consigo verbalizar, eu te mando a página do meu blog!" A página do blog fala mais das pessoas do que elas próprias são capazes de expressar. Sendo assim, o blog é sempre uma resposta. Mas, afinal, quem é a pessoa que se constrói no blog? Por quais razões o secreto está brutalmente escancarado em rede mundial?

Guy Debord, em 1967, criou o conceito de "Sociedade do Espetáculo". Quase trinta anos antes do surgimento dos diários virtuais, ele vislumbrou desdobramentos inacreditáveis que o mundo iria manifestar.

Recorrer a ele para analisar as marcas existentes nas páginas pessoais é quase instantâneo. Afinal de contas, a construção de um blog com o objetivo de desnudar a intimidade é um sintoma do narcisismo desvairado que enlouqueceu a todos nós:

"Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente".

Ao transpô-lo à virtualidade, percebe-se facilmente o que está implícito. Alimentando, dia após dia nossos blogs, podemos inventar nossas próprias vidas, transformando-as em peças muito mais interessantes. Nós, autores, não estamos realmente despidos perante nossos leitores, muito pelo contrário: fingimos a nueza que nos dê contornos mais harmoniosos. Corpos de mentira, espectros daquilo que acreditamos ser mais sedutor para quem nos lê.

As relações humanas tornaram-se um jogo de personas, de aparências mais belas. Os nossos defeitos puderam ser ― a partir de fotos felizes e relatos fantasiosos ― apagados. O teclado assume o papel de narrador da história que se gostaria de contar. A realidade é feia, cheia de cicatrizes e errâncias.

Debord invade as linhas, conduzindo-nos a aberturas do pensar ainda mais penosas que a existência da representação. Ele expõe que é o espetáculo o grande construtor da realidade, e que a sociedade se pauta naquilo que aparenta para conduzir suas doutrinas e verdades.

Estamos a negar a existência de nós mesmos por qual motivo? Por que nos é tão assustadora a incapacidade de sermos perfeitos? Por que o palco e a plateia clamam por tamanha energia? A incompletude é inerente ao humano. Talvez a fragilidade não deva ser negligenciada. A sombra é essência. Ora, o horrível negrume dos defeitos! Ele merece ser esquecido?

Da mesma maneira, essas falsas verdades estão em constantes modificações. A cada novo amanhecer, as descobertas são supérfluas e desprezíveis. Basta um piscar de olhos para que um comportamento saia de moda e outro tome seu lugar. A mídia eletrônica reformula as notícias de acordo com a apreciação do público. Nas palavras de Italo Calvino:

"Vivemos debaixo de uma chuva ininterrupta de imagens; os mais poderosos meios não fazem senão transformar o mundo em imagens e multiplicá-los através de uma fantasmagoria de jogos de espelhos: imagens que em grande parte estão privadas da necessidade interna que deveria caracterizar toda a imagem, como forma e significado, como força de impor à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte desta nuvem de imagens dissolve-se imediatamente, tal como os sonhos que não deixam marcas na memória; mas não se dissolve uma sensação de estranheza e mal-estar".

Por que essa sensação de estranheza fica sempre em nós? O estrangeiro nos pertence? Por que tudo se dissolve com a mesma facilidade que cria a matéria? E o homem líquido é também paradoxal: deseja uma solidez de resposta. A humanidade que somos clama por raízes e segurança. Mesmo que o amanhã as apague. É só deletar o blog e o passado morreu. Facilmente se encontra uma imagem mais bonita que ilustre a irrealidade teatral. Afinal de contas, o que é a memória na sociedade espetacular?

Uma das contradições mais engraçadas que se pode encontrar, na análise de um blog pessoal, diz respeito à linguagem. Em sua maioria esmagadora, os artigos são de uma pobreza semântica inacreditável. Além das abreviações típicas do mundo virtual ("vc", "aki", "kd" etc.), vemos uma infinidade de erros gramaticais e problemas ortográficos. Por que será que os atores principais dos blogs não têm esse tipo de preocupação? A língua está obsoleta? Uma imagem vale mesmo mais do que mil palavras? "Diga isso sem usar palavras", diria Millôr Fernandes.

Ora, é claro que sim! Muito mais importante é estar vestido adequadamente, ter as unhas devidamente cortadas, os cabelos iluminados por cremes caros. A maneira de falar ou escrever é irrelevante, se o corpo está em forma. Em blogs pessoais, mais vale que o autor seja fotogênico, que tenha bons vídeos, que saiba entreter seus leitores. Ele está, então, anos luz à frente de um autor preocupado com as miudezas da escrita.

Somos, assim, vítimas e protagonistas do espetáculo. Escolhemos livros pela beleza das capas. Acreditamos nos programas televisivos como se realmente os jornalistas fossem seres desprovidos de opiniões e tendências. A nossa avidez por novidades é incalculável. E o blog não é diferente disso tudo: é apenas mais uma triste fotografia do planeta, na era pós-moderna.

Será que os pretensos escritores dos blogs pessoais estão fartos de não pertencer ao nefário espetáculo que é o mundo? E esse sentimento de infelicidade, de ter apenas uma vida normal pode enfim ser aniquilado, com postagens megalômanas?

Contudo, seria imensamente triste se existisse uma homogeneidade nesse universo, se toda e qualquer página possuísse as mesmas intenções. Nem só de figurantes fantasiosos vive a blogosfera. Nem todos os autores gostam de se expor deliberadamente. Não é porque o espetáculo tomou conta do mundo que não se pode tirar proveito disso.

A comunicação virtual dá espaço para pessoas que sonham em publicar seus livros. Infelizmente, as editoras estão mais interessadas nas vendas do que na qualidade dos textos. É muito provável que sejamos privados de grandes escritores, todos os dias, pela falta de competência do mercado editorial.

Claramente não é possível afirmar que os donos de blogs literários sejam mais evoluídos que os outros, nem que superem a sociedade espetacular. Todo autor precisa do público para existir. No entanto, o público não pode ser regente do autor: quem escreve deve ser maestro de si mesmo, dir-nos-ia Nietzsche:

"O pensador não necessita da aprovação e dos aplausos, desde que esteja seguro de seus próprios aplausos: desses não pode prescindir. Existirão pessoas que dispensam esta ou aquela espécie de aprovação? Duvido; e mesmo dos mais sábios dizia Tácito, que não era nenhum difamador de homens sábios: 'ainda para os sábios o desejo de glória é o último que desistem' ― o que nele significa: nunca".

A imensa diferença entre um blog com vontade de ser livro e um blog pessoal é o conteúdo. Um deles assiste ao espetáculo e sucumbe às montras. Conta-nos histórias privadas sem critérios pré-definidos. Expõe suas entranhas na rede. Espera pelo aplauso. Utiliza-se de um linguajar pobre. Desabafa, exibe e destranca os velhos cadeados do diário.

Os blogs literários não estão imunes ao palco. Pelo contrário, eles aproveitam-se dessa enorme vitrine que é a rede para divulgar seus trabalhos, quase como um curriculum vitae.

Temos, por fim, duas verdades inexoráveis. O formato de blog vai se multiplicar cada vez mais, até mesmo como recurso jornalístico. E o palco irá permanecer aceso, gigante, louco por plateias. Cabe a cada um de nós utilizá-lo como janela para apreciações mais profundas, mais pautadas em conteúdo.

Se há nos homens a consciência do Espetáculo, fica muito mais fácil avaliar quando somos engolidos pelo jogo narcísico. E não se pode agir com pessimismo, neste caso. Devemos iluminar o lado bom. Quantos músicos, quantos escritores, quantos pintores nossos olhos poderão conhecer, com a democracia virtual? A ideia de que a nossa sociedade é a primeira capaz de superar a ditadura dos meios artísticos é maravilhosa. Eu também sonhei em ser um livro. Utilizo a internet para alcançar o tão esperado papel. E repousarei meu epitáfio no interior da livraria.

Nota do Editor
Mariana Portela mantém o blog Confissões, declarações e crônicas.

Mariana Portela
São Paulo, 25/3/2010

 

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