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Quinta-feira, 8/4/2010
O hiperconto e a literatura digital
Marcelo Spalding

A literatura digital é aquela nascida no meio digital, um objeto digital de primeira geração criado pelo uso de um computador e (geralmente) lido em uma tela de computador. Katherine Hayles, no livro Literatura Eletrônica: novos horizontes para o literário, define-a, em poucas linhas, como "obra com um aspecto literário importante que aproveita as capacidades e contextos fornecidos por um computador independente ou em rede".

A autora identifica diversas estéticas para este tipo de literatura, como ficção em hipertexto, ficção na rede interligada, ficção interativa, narrativas locativas, instalações, "codework", arte generativa e poemas em Flash. No que tange ao conto, pelo menos dois gêneros despontam na Era Digital como grandes possibilidades literárias já adaptadas ao novo meio: o miniconto e o que chamamos de hiperconto.

O miniconto encontrou na Web um ambiente propício devido a extensão e aos poucos se torna parte de projetos maiores, bem definidos e acabados, como o caso de Dois Palitos, de Samir Mesquita. Utilizando o Flash, Samir põe o internauta diante de uma caixa de fósforos aberta, e cada clique nos fósforos nos apresentará um miniconto da caixa. Mais do que textos dispersos, a unidade de layout e a brincadeira com os palitos de fósforo nos põe diante de um projeto literário uno, assim como quando abrimos um livro de contos ou poesias: mesmo entendendo que os textos são independentes, sabemos que houve um cuidado de composição por parte do escritor, que de alguma forma está refletido no objeto literário.

É um bom exemplo de uma estética que chega na internet a partir do texto impresso, encontra no novo meio espaço privilegiado de circulação e aos poucos é transformado por este meio, à medida que em obras como a de Mesquita deixam de ser mero exercício de concisão e convertem-se em estética para a produção de uma obra maior, completa, multilinear.

Outra possibilidade do conto nas novas tecnologias é o conto em que o leitor participa de sua evolução através de hiperlink, gênero que estamos definindo como hiperconto.

Um bom exemplo vindo do exterior é Inanimate Alice, de Kate Pullinger, uma narrativa linear produzida em Flash em que uma menina e sua mãe procuram desesperadamente pelo pai em certa localidade da China. Publicado em outubro de 2005 no site da autora e selecionado pelo volume I da Coleção Literatura Eletrônica, organizada por Katherine Hayles em 2006, utiliza as ferramentas tecnológicas como apoio à história narrada, com áudio, fotografias, imagens em movimento, ilustrações, pequenos vídeos, mapas. Forma e conteúdo, aqui, combinam de forma perfeita, pois a vida da menina de oito anos é completamente mediada pelos meios eletrônicos, chamando a atenção do leitor para o excesso de informações a que a menina está submetida (não por acaso a tela do celular da menina é recorrente ao longo da história, convertendo-se em cursor na tela, em certo momento, simulando uma máquina fotográfica). Essa familiaridade com os meios eletrônicos não impede que no capítulo "To do list", quando ela digita em seu celular coisas que gostaria de estar fazendo naquele momento, mencione andar de skate, brincar numa piscina com os amigos e cuidar de um cachorro, embora lembre nunca ter tido um cachorro para cuidar, o que evidencia ser a presença constante dos eletrônicos mais do que uma opção da menina, uma contingência das circunstâncias, o que poderíamos interpretar como uma crítica à sociedade contemporânea.

Experiência brasileira semelhante é a de Mauro Paz em seu desfocado. A obra também é uma narrativa em Flash que conta a história de um jovem rapaz, seus relacionamentos fugazes, seus sonhos, seus medos, sua angústia. A rapidez dos capítulos é também a rapidez da vida particular do protagonista, e a rapidez da contemporaneidade como um todo. Formalmente, a história tem sete capítulos não lineares, cada um com um visual elaborado e completamente diferente e estratégias narrativas também distintas. Há cartas, SMS, notícias de jornal e até uma criativa lista cerebral, em que cada área do cérebro nos remete a algo que o personagem está pensando naquele momento.

Em ambos os casos, porém, a narrativa está posta e o leitor não tem o poder de interferir no rumo dos acontecimentos. Já em experiência hipertextual que desenvolvemos com alunos de um curso de extensão em Narrativas para Web, na PUCRS, criamos uma história em que há oito possíveis finais, definidos a partir da escolha do leitor em três momentos decisivos. Publicado no site Hiperconto, Um estudo em vermelho utiliza análise combinatória para que os finais necessariamente tenham relação com o caminho escolhido pelo leitor ao longo do texto. A história começa com um e-mail enviado pelo leitor a um detetive informando que sua irmã sumiu. A partir daí o detetive responde sempre abrindo possibilidades, e se o leitor, por exemplo, afirmar que sua irmã é uma falsa, aceitar pagar o valor exorbitante pedido pelo detetive e quando perceber a fraude em vez de chamar a polícia resolver enfrentar ele mesmo o homem, acabará descobrindo que tudo fora armado e a irmã àquela hora estará muito longe com seu amante, o detetive. Já se o leitor, achando que sua irmã é uma falsa, resolver não pagar o detetive e ainda enfrentá-lo sem a polícia, pegará ambos na cama e matará os dois.

Este tipo de texto narrativo que explora a interatividade e os hiperlinks tem sido chamado pelos norte-americanos de hiperfiction. Nesse estudo, porém, optamos por chamá-lo de hiperconto em vez de hiperficção, assim como o termo miniconto no Brasil é mais comum do que minificção, apesar de em língua inglesa ser usado o microfiction.

O hiperconto seria uma versão do conto para a Era Digital. Sendo ainda um conto, de tradição milenar, requer narratividade, intensidade, tensão, ocultamento, autoria. O texto, naturalmente, ainda deve ser o cerne do hiperconto, preservando seu caráter literário. Mas um bom hiperconto será capaz de aproveitar as ferramentas das novas tecnologias para potencializar a história que conta da mesma forma que os livros infanto-juvenis, por exemplo, têm se utilizado da ilustração. Imagens, em movimento ou não, áudios, hiperlinks, interatividade e quebra da linearidade são apenas algumas das possibilidades do hiperconto. Claro que um bom hiperconto não precisa utilizar todos esses recursos ao mesmo tempo, assim como há filmes belíssimos sem efeitos especiais.

Naturalmente, esse tipo de trabalho nada mais é do que uma tentativa de explorar as novas ferramentas tecnológicas para produzir um texto literário narrativo, e a própria intenção de criar o site Hiperconto visa atrair outros autores de obras digitais para que enviem seus links e possamos, aos poucos, ter um corpus consistente desse tipo de produção em língua portuguesa.

Marcelo Spalding
Porto Alegre, 8/4/2010

 

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