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Sexta-feira, 23/4/2010
Parodiando a autoajuda
Carla Ceres

Os escritores da moda sabem que seus trabalhos de qualquer gênero precisam de um quê de autoajuda para obter sucesso. Muitos leitores, por sua vez, ficaram condicionados a encarar qualquer texto como um guru simplificador, cheio de bons conselhos para realizar seus sonhos. Parece um relacionamento perfeito, do tipo ganha-ganha? Nem sempre. Falando quase seriamente, vou arriscar um palpite sobre os erros que levam os livros de autoajuda a frustrar seus leitores. Pensando bem, vou arriscar logo uma porção deles porque palpite é bom assim, de bastante, para ver se algum cola.

O primeiro erro da autoajuda é a mania de achar que tudo o que pode ser resolvido deve ser resolvido. É o tipo da ideia besta de quem desconhece a malandragem dos problemas, suas táticas de guerrilha e espionagem.

Os pessimistas resmungam que viver é resolver problemas. Se concordarmos com eles, chegaremos à conclusão de que, depois de um problema, vem outro mais complicado. É assim que os problemas agem: mandam primeiro um facinho, depois começam a encrespar.

Fãs de ficção científica comparam o agravamento insidioso dos problemas a uma invasão de marcianos. Primeiro uma navezinha mixuruca aparece zanzando tranquilamente pelo nosso horizonte, como quem não quer nada. Mexemos com ela e a invasão começa.

Em geral, o problema está quieto no canto dele, isto é, bem no meio da nossa vida, esperando uma provocação. A melhor dica a esse respeito é: se o problema está quieto, não mexa; se ele se mover, fique quieto; se ele atacar, pau nele.

O segundo erro da autoajuda é a mania de querer que o leitor desenvolva suas potencialidades. Certos livros nos levam à exaustão de tanto detalhar o trabalho que teremos para aprimorar nossos "talentos naturais".

A palavra mágica é "potencial", e a trágica, "esforço".

Em potencial, somos todos gênios e podemos treinar nosso cérebro para ler, em cinco minutos, um relatório que levou cinco anos para ser elaborado e que está ultrapassado há cinco meses. Ultrapassados, também, parece que estão os velhos cinco sentidos. Agora somos todos paranormais. Podemos treinar nossa mente para adivinhar números de loteria (ação que os livros condenam, mas ensinam), ou formar uma rede de fofoca telepática (o que, por sinal, não vale a pena, pois você leva muito tempo para aprender os macetes e, quando consegue, não tem como trazer material impresso para provar que esteve lá).

Existem obras que nos ensinam a administrar conflitos empresariais com flexibilidade. Bons exemplos (com títulos traduzidos para o português claro) são os revolucionários Essa joça não vai! E agora? e Quando o sapo desce coaxando.

Tais escritos, para fugir do rótulo de autoajuda, revestem-se de uma pretensa seriedade científica. Seus autores, economistas e administradores de alardeado sucesso, aparecem na foto da contracapa com aquele olhar de "eu sei que você me inveja".

Ao menos nesse ponto, eles estão certos: são invejados mesmo! Nem adianta vir com esse papo de que esses caras se matam de trabalhar, sofrem do coração e, quando morrem, vão para o inferno direto. Se algum desses argumentos prestasse, essas obras-primas venderiam tanto?

Há pouca ciência e muita enrolação nesses "manuais para a fortuna". As estatísticas provam que é mais fácil acertar o nome do futuro marido com uma simpatia de São João do que subir na vida através de livros de embromação econômica. Empresários poderosos costumam dever seu sucesso (e sua frota de namoradas último tipo) às suas pontes de safena e à desgraça de outros empresários.

O pior é a trabalheira medonha por trás de tantos bons conselhos! Nosso sonho é nascer sabendo. Essa história de em potencial cansa muito.

O terceiro erro da autoajuda é a mania de amortecer e desvalorizar o desespero.

A solidão e o desespero favorecem a venda dos livros de autoajuda da mesma forma que o analfabetismo e a miopia garantem o sucesso dos audiolivros. É contra o desespero, não contra algum problema bem definido, que o leitor pede socorro. Os autores sabem (se aproveitar) disso. Amortecem nossa ansiedade mantendo-nos ocupados com longos rituais e treinamentos.

Digamos o seguinte: a sua paixão deu no pé, você engordou, está com o rosto inchado porque precisou extrair um dente do siso e, para piorar, terá que extrair os outros três logo, logo. Isso não é nada, passa em dois meses (num SPA, de preferência). O pior é como você interpreta a situação: ninguém, nunca mais, vai querer saber de uma baleia banguela com cara de lua cheia feito você.

Pensando assim, seu próximo passo será engordar mais e mais até se desesperar e recorrer a um livro do tipo A dieta do chuchu com água. Interessou-se? Com ingredientes variados, os autores compuseram um total de quarenta receitas (uma para cada dia de vida do leitor). Pessoas menos exigentes com sua beleza física podem abandonar a dieta após o trigésimo prato e contentar-se com uma elegante anorexia.

Optando por essas "soluções", chega-se a momentos em que desesperar-se faz sentido.

A "cultura do acalme-se" quer poupar os ouvidos da sociedade sensata, evitar que criaturas inconvenientes fiquem choramingando tolices sobre desamparo e dor. Em contrapartida, um movimento vem fazendo adeptos estridentes a favor do direito de berrar.

Meu medo é que essa oposição yin-yanguiana promova uma "burocratização do grito" que venha a resultar em fenômenos como: o desespero com hora marcada; a criação de gritódromos; maracutaias no fornecimento de tapa-ouvidos e a substituição dos verdadeiros sofredores por atores (que sofrem muito mais bonito).

Um bom palpite é: quando se desesperar, não choramingue porque isso é irritante; faça logo um escarcéu até alguém vir ajudar. Confie em mim, sempre vem um monte de alguéns, afinal, a humanidade é xereta, adora dar palpite na vida alheia.

Bem, chega de palpites! Espero ter contribuído para aprimorar esse gênero literário de primeira necessidade e parágrafos curtos.

Carla Ceres
Piracicaba, 23/4/2010

 

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