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Quarta-feira, 28/4/2010
O comerciante abissínio II
Guilherme Pontes Coelho


David Rombaut © (http://www.davidrombaut.info/)


Conversas de literatos, daquelas carregadas de afetações e pseudoerudição, quando chegam ao nome de Arthur Rimbaud seguem padrões já conhecidos por quem é afeito a leituras. Ou os literatos se concentram na vida poética de Rimbaud, o gênio adolescente que mudou as letras francesas e destruiu a vida de seu parceiro, Paul Verlaine; ou ressaltam a guinada existencial do poeta, que de súbito esqueceu a poesia e, agora entra o maior dos pecadilhos, foi para África "traficar armas e escravos". Esse é o roteiro básico dos entendedores.

A vida adolescente de Rimbaud, a que entrou para História, é sabida. É muito fácil falar dela sem cometer grandes deslizes. Um adolescente genial, resumindo. Seus poemas falam tudo. Além do mais, havia muitos conterrâneos narrando a Paris de Rimbaud ― a História está cheia de capítulos sobre o jovem no meio literário em que viveu. Essa fase de sua vida não apresenta obstáculos aos biógrafos, leitores, pesquisadores.

Curiosamente, não podemos dizer o mesmo da segunda fase de sua vida, a em que ele matou o poeta Arthur Rimbaud. Este outro Rimbaud foi um comerciante em Harar, Etiópia (Abissínia). Vendia tecidos, utensílios, ervas, metais.

Dizer que Rimbaud "traficava armas e escravos" é apenas um recurso narrativo, daqueles que ficam bem nos livros do Enrique Vila-Matas. É um fetiche. O adolescente genial da literatura francesa abandona a pena para vender almas e alimentar a morte. (O período anterior não ficou tão afetado quanto gostaria.) Um grande equívoco.

Rimbaud abandonou a literatura, mas não a escrita. O "curioso" é isso: ele manteve uma rica correspondência com amigos e familiares, cartas nas quais ele narrou vários episódios de sua vida africana e descreveu muito do que comerciava e do que pretendia vender. Além disso, como é hábito entre os que convivem com os grandes, muitos dos seus contemporâneos africanos escreveram memórias; nestas memórias, há sempre um capítulo sobre o convívio com o comerciante de olhos azuis. Ainda assim, com tanta documentação sobre esse período, ninguém resiste ao charme de dizer: "Ele largou tudo e virou traficante de escravos e armas". Bem, ele se transformou noutra pessoa, sem dúvida quanto a isso. Quanto a isso.

É possível nomear ao menos uma pessoa como uma das, digamos, incentivadoras da confusão biográfica: Enid Starkie. Por ter menos habilidades em francês do que imaginava, e por não entender a economia etíope no que se refere a empregados domésticos, a irlandesa poluiu gerações com um mal-entendido nascido da deficitária tradução de uma carta de Rimbaud. Sabe, essas pesquisas realizadas entre quatro paredes sobre seres humanos e lugares de verdade.

Acredito que existe também uma dose de preconceito envolvida nessa repetida confusão. Imagino "o literato": leitor ávido, aspirante a poliglota e sedentário; um enaltecedor recalcitrante do cânone e que não se cansa de afirmar que a literatura de hoje (um "hoje" de mais de cinquenta anos) é uma merda; um crítico implacável que não valoriza nenhuma literatura produzida por jovens, a não ser a de Arthur Rimbaud (ele não menciona Álvares de Azevedo, nem outro jovem lusófono qualquer, porque não gosta de ler em português); um homem de vida rotineira e insípida e que vive mais suas próprias abstrações poéticas ― produzindo, a partir delas, apenas diatribes venais dirigidas aos demais acadêmicos (ah, ele é acadêmico, professor adjunto de linguística).

Aposto que você deve conhecer personagens do mesmo calibre, e provavelmente você não é assim, porque "o literato" não lê na internet, a não ser para publicar as próprias palavras, seja em textos quilométricos, seja em vídeos de dicção pomposa, se estiver mais conectado às maravilhas audiovisuais da Web.

Enfim, uma figura como "o literato" deve preferir o ídolo transformado num ser muito mais romântico e aventureiro do que um comerciante andarilho, quase um mascate. Um traficante de armas e escravos.

Até os vinte anos ele foi o poeta Arthur Rimbaud; a partir dos 23 ele saiu pelo mundo; chegou à Abissínia com 25 anos e por onze anos foi um comerciante perfeccionista. Nunca mais escreveu uma poesia e ficava extremamente irritado quando mencionavam seu passado. Quase ninguém sabia que ele era o poeta Arthur Rimbaud. Os que souberam, souberam por conta própria: ele nunca falou nada sobre sua vida literária, nem sobre ser uma celebridade poética na França. Seu passado era o de um estranho.

Pois bem, não gostam desse Rimbaud. Esse Rimbaud comerciante é pouco literário, não é um personagem no qual se espelhar, ou com o qual emular. É um Rimbaud que cospe nas Iluminations e em Une saison en enfer (este, aliás, único livro que Rimbaud realmente quis publicar, as demais obras foram editadas por e aos cuidados de Verlaine, ou mesmo por terceiros, não-autorizadas).

É justamente nesta transformação que está todo o fascínio por Arthur Rimbaud. O autor de Uma estadia no inferno é o mesmo comerciante da Abissínia? Duas pessoas tão diferentes, dois seres humanos distintos que viveram sob a mesma pele. Sua vida foi sua maior obra de arte. L'oeuvre-vie, como dizem os franceses, "obra-de-vida". Para ir além
Rimbaud na África (Nova Fronteira, 2007, 496 págs.), de Charles Nicholl.

Guilherme Pontes Coelho
Brasília, 28/4/2010

 

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