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Sexta-feira, 30/4/2010
Ainda volto ao Museu (com 'menas' pressa)
Ana Elisa Ribeiro


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

Sim, leitor, eu tive de colocar "menas" entre aspas. Infelizmente. Pensei mil vezes antes de fazer isso. Matutei: discrimino ou não esta palavra? Devo ou não demarcá-la, como que dizendo ao enunciatário que ele deve estar alerta para um sentido segundo? Tirei as aspas, mas aí tive um temor de que achassem que, vá lá, esta colunista veterana neste sítio ainda não sabe acertar no português. Ao fim e ao cabo, meti logo as aspas para que não haja dúvida de que eis, aí, uma expressão imprópria, digamos, ou inadequada, como preferem alguns, especialmente aqueles que enxergam uma linha razoavelmente clara entre o certo e o errado na língua.

Na verdade, estou afetada pela visita que fiz, mui recentemente, ao Museu da Língua Portuguesa, de novo. Logo nos inícios, quando a exposição do primeiro andar ainda era do meu conterrâneo Guimarães Rosa, fui lá experimentar aquele belo prédio. Lembro pouco do evento. Se eu me esforçar, sei que adorei pular de um canto a outro olhando por uns buraquinhos que me permitiam ler, de ângulos diversos, frases do escritor de Cordisburgo. Não cheguei a visitar a sala de cinema (porque nos atrasamos e perdemos a sessão) e curti muito os jogos de palavras do outro andar.

Desta vez a experiência foi toda mais completa. Um filósofo diria que o rio não é mais o mesmo e nem eu, que entrei nas águas pela segunda vez. Éramos outros: eu e o Museu.

A exposição do primeiro andar é, agora, Menas, um discurso sobre a língua bastante diverso desse que a mídia de massa asperge em nós todos os dias, se não pelos programas de TV, ao menos pelas colunas de jornais (impressos e digitais). O caso ali é de linguística e, mais especificamente, de sociolinguística. Não é à toa que a instalação contou com curadorias e consultorias de especialistas como Ataliba Castilho e Rodolfo Ilari, que são, faz muito, algumas das mais importantes lombadas de livros da bibliografia de qualquer estudante que tenha escolhido se tornar um estudioso de línguas e linguagens.

Menas é uma homenagem à língua como ela é. Não é uma afronta à gramática. É uma aula interativa (no sentido de que essa aula me muda e eu "mudo ela") sobre nossos falares. É uma sessão de imersão na língua brasileira. Portuguesa, com certeza, mas com este nosso cantar.

Na saída do elevador, causa a maior impressão um ambiente quase escuro de cujo teto pendem placas de acrílico com palavras e pedaços de palavras, em várias cores, dispostas de maneira aparentemente caótica. Mas o ambiente nos guia, assim como nossas percepções. Há umas placas pretas com buracos por onde devemos olhar. Pelo orifício conseguimos ler umas frases que nos fazem, ao menos, pensar. Pensar sobre a língua que falamos, da qual somos falantes desde ali pelos dois aninhos. O esquema físico da montagem me trouxe de volta a lembrança da instalação de Guimarães Rosa.

Mais atrás, um painel de aspectos gramaticais da língua. A parede de curiosidades me fez sentir uma imensa vontade de ter uma daquelas em casa. Na sala, no quarto, no escritório. Atrás, máquinas (computadores camuflados) ofereciam jogos que, de primeira, faziam lembrar testes de regras de gramática. Questões de múltipla escolha ofereciam opções para problemas de ortografia, regência e outros. Brincando ali, ainda ancorada em experiências como o Jogo do Milhão ou em testes de língua tradicionais, de repente percebo que todas as opções estão sempre corretas. Logo abaixo da resposta aparece um texto explicando muito bem que relações aquela grafia ou aquela construção tem com os usos. E mais: a máquina computa o percentual de pessoas que responderam como você. Muito interessante, portanto, comprovar que a variação linguística está ali, diante de você, que é mais um dos visitantes do Museu.

Vozes, textos, sons, palavras pendurados nas paredes, caindo do teto, atravessando nosso caminho, zumbindo e ecoando. Imersão. Imensidão. Idioma e, como narrou Fernanda Montenegro, idiomaterno.

Enfim, consegui assistir à projeção dentro daquela sala escura. Um vídeo curto, mas suficiente, traz depoimentos, declamações e uma brevíssima história das línguas, numa mescla de clipe e vídeo didático. A voz de Fernanda é de arrepiar. Uns tantos rostos conhecidos trazem textos de outros autores. Tudo ali é linguajar.

Ao final do vídeo, um monitor nos chama para trás das cortinas. No fundo, atrás da tela, trancam-nos numa sala escura, na qual há arquibancadas onde podemos até nos deitar. No teto, poemas, textos, canções, imagens voam pelas paredes como borboletas. Céu de estrelas. Saí de lá com um poema de Fernando Pessoa completamente incrustado no cérebro. Há quanto não o ouvia/lia.

O sotaque do Museu é paulistano. O descaramento da escolha do português brasileiro é de dar muito orgulho. Todos os portugueses do mundo estão lá, mas a dona da bola é a língua que falamos aqui, deste lado do Atlântico. Focalizando um pouco melhor, estão representados nossos autores famosos, nossos livros, nossos poemas. Canções do exílio, Gregório de Mattos impressionantemente atual. Mas o Museu é paulistano. A lira é paulistana. A galáxia que está ali é a dos irmãos Campos. A cidade cantada em alguns versos é São Paulo. É uma homenagem enfurecida.

O linguista David Crystal, em sua obra A revolução da linguagem, editada no Brasil em 2005, se perguntava: "Toda cidade grande possui algum tipo de galeria de arte ou um museu de história natural. Mas onde está a 'galeria' dedicada à língua? Onde está o espaço ao qual as pessoas podem ir para ver como a língua funciona, é usada e se desenvolve?" Respondo: é ali na Estação da Luz, David. Você não sabia? Ou será que não imaginou que essa iniciativa teria lugar aqui abaixo da linha do Equador?

O mesmo linguista contava, nas mesmas páginas, que, na década de 1990, especialistas "revolucionários" do Reino Unido tiveram a ideia de fazer um Museu de Língua. "Um edifício com vários andares, o primeiro desse tipo, dedicado ao mundo da fala, da escrita, do significado, das línguas e ao seu estudo". O Conselho Britânico apoiou, o prédio foi escolhido, mas parece que os pássaros não gorjearam tanto por lá. Crystal cita outras iniciativas, em vários cantos do mundo, todas na Europa. Mas o Museu está em São Paulo, desde março de 2006.

O impacto que aquele espaço nos faz sentir vai além da curiosidade pelas máquinas e pelas projeções na parede. O que é um Museu (ele nos faz pensar)? O professor Paulo Cézar Ventura, especialista em museus em Minas, questionava os visitantes: "O que lhe vem à cabeça quando você pensa em museu?" Susssurravam alguns: "Coisa velha". Outros arriscavam: "Um lugar cheio de objetos". E o que é este museu? Qual é sua noção de acervo? Onde vai o humano neste projeto? Eu, falante da língua portuguesa, faço parte do acervo enquanto estou aqui. E teria sido ainda mais interessante se o Museu da Língua Portuguesa entrasse nesta onda 2.0 e aceitasse nossa contribuição. Este meu sotaque mineiro precisa de registro, antes que o Jornal Nacional acabe com ele. Minha pronúncia, minha sintaxe, meu dialeto, meu português. Paulo Ventura menciona a existência de alguns museus-fórum, que me lembram muito aspectos da Web colaborativa. Será?

Esta visita foi toda mais completa. Alinhavei minha língua ali, ouvindo e experimentando os espaços onde as palavras corriam pelas paredes e me faziam rememorar textos que já estavam guardados. Um jogo de linguajar em três andares para a gente se reconhecer em todos os cantos.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 30/4/2010

 

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