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Quinta-feira, 13/5/2010
Propostas para o nosso milênio (II)
Marcelo Spalding


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

Na coluna anterior iniciei uma abordagem dos cinco conceitos trazidos por Italo Calvino no livro Seis propostas para o próximo milênio sob o prisma da literatura digital, projetando o que os artistas em geral, e os escritores em particular, poderão fazer a partir das novas ferramentas tecnológicas em suas obras. Inicialmente comentei sobre a multiplicidade e visibilidade, e agora abordarei a exatidão, a rapidez e a leveza.

A exatidão, terceira conferência de Calvino, é definida pelo autor de três formas: "1) projeto de obra bem definido e acabado; 2) evocação de imagens nítidas, incisivas, memoráveis; 3) uma linguagem que seja a mais precisa possível com um léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação".

O que vale examinar primeiro, por ser o ponto mais incisivo do texto, é o repúdio de Calvino ao uso descuidado da língua: "às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra". Para o escritor, não interessa indagar as origens dessa "epidemia", se é originada na política, na ideologia, na homogeneização dos mass media, e sim a possibilidade de salvação através da literatura, pois só a literatura "pode criar os anticorpos que coíbam a expansão desse flagelo linguístico". Tal valor é importante por reforçar a importância do fazer literário, do trabalho com a palavra. Não é porque estamos diante de outra mídia, uma mídia aparentemente informal como a internet, que devemos despejar qualquer texto, escrito de qualquer jeito e sem nos preocuparmos com revisão, acabamento, estilo (e quem navega na internet sabe que isso ocorre com muita frequência).

Não se pode, entretanto, atribuir o desleixo com o uso da palavra na internet apenas à multiplicidade de emissores, tampouco a uma deformação intelectual dos internautas, e sim a uma enorme facilidade de publicação e edição. Imprimir um livro ou um jornal, todos nós sabemos, é um processo demorado e caro. É raríssimo, portanto, se reimprimir um jornal ou um livro por causa de uma palavra inexata, seja por questões gramaticais ou de estilo. Já na internet bastam alguns segundos para se mudar uma palavra, um parágrafo ou um texto inteiro, o que "relaxa" o emissor.

Em lugar desse "relaxamento", a facilidade de edição poderia ser utilizada para atualizar os textos literários constantemente, quem sabe mudá-los a cada mês do ano, por exemplo. Imaginemos um romance como As cidades invisíveis em que a cada semana uma nova cidade é inserida no livro, de forma que a cada ano o livro que lemos é totalmente modificado. Tecnicamente tal procedimento é possível e até bastante simples, depende apenas do "projeto de obra" que se tem.

Este conceito de Calvino, aliás, é de extrema importância para os escritores digitais: exatidão como "projeto de obra bem definido e acabado". É preciso pensar no texto publicado na WWW como se pensa no texto a ser publicado em papel, como um projeto de um autor. Há muitos sites que publicam textos on-line de qualquer um que enviar, e aqui nem precisamos citar exemplos, mas eles são tão interessantes quanto uma antologia reunindo os 100 melhores escritores veterinários do Rio Grande do Sul ou os 20 mais jovens escritores da Universidade de Cruz Alta (será interessante para os participantes, seus amigos e familiares, mas é possível que não alcance circulação e interesse maiores pelo público em geral). Um projeto de literatura para a World Wide Web precisa pensar o site como se pensaria num livro, com todos os elementos desse site colaborando com a criação de sentido do projeto de forma que cada texto complete e potencialize o sentido do todo.

Um bom exemplo é o Dois Palitos, do escritor Samir Mesquita. Utilizando o Flash, Samir põe o internauta diante de uma caixa de fósforos aberta, e cada clique nos fósforos nos apresentará um miniconto da caixa. Mais do que textos dispersos, a unidade de layout e a brincadeira com os palitos de fósforo nos põe diante de um projeto literário uno, assim como quando abrimos um livro de contos ou poesias: mesmo entendendo que os textos são independentes, sabemos que houve um cuidado de composição por parte do escritor que de alguma forma está refletido no objeto literário.

O miniconto, aliás, é um gênero que vem se constituindo como tal nos últimos anos e encontrou na internet seu espaço ideal de circulação e disseminação. O próprio Calvino menciona na conferência sobre a "rapidez" que "gostaria de organizar uma coleção de histórias de uma só frase, ou de uma linha apenas, se possível", apontando para a importância da concisão "nos tempos cada vez mais congestionados que nos esperam".

Dessa forma, passamos para a penúltima conferência (ou segunda, de acordo com a ordem do livro), a rapidez. Assim como fez com a visibilidade, Calvino novamente irá sublinhar as virtudes e os riscos deste valor para o nosso milênio, apontando a literatura como capaz de reinventar a rapidez diante da pasteurização midiática: "dado que me propus em cada uma destas conferências recomendar ao próximo milênio um valor que me seja especialmente caro, o valor que hoje quero recomendar é precisamente este: numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita".

O miniconto, sob este ponto de vista, poderia ser visto como uma narrativa extremamente curta que através de poucas palavras tenta provocar algum efeito no leitor, tirando-o do lugar comum, explorando a diferença, o não-dito, o poético. É a "explosão de energia espiritual" exigida por Cortázar para o conto elevada a uma potência ainda maior, revelando a importância de se dizer cada vez mais com menos na cultura contemporânea.

Sobre este aspecto, vale mencionar que a infinidade de sites existentes na internet faz com que o tempo médio de permanência do internauta em um site seja bastante reduzido, o que só aumenta a importância da rapidez. Como exemplo, podemos citar alguns dados do relatório de acessos gerado pelo Google Analytics para o Portal Artistas Gaúchos: o tempo médio no site é de 2 minutos e 46 segundos, sendo a média de páginas por visita de 3,54 .

A leveza, por fim, talvez seja o mais complexo conceito de Calvino sob o prisma da Era Digital. Primeiro porque o próprio autor iniciará admitindo os argumentos válidos a respeito do peso, ainda que tenha "mais coisas a dizer sobre a leveza". Depois porque seus efeitos recaem mais sobre o texto em si do que sobre as ferramentas tecnológicas, conforme pretendemos demonstrar.

Citando sua própria obra, Calvino afirma que no mais das vezes sua intervenção "se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem".

Dessa forma, podemos entender a leveza como uma sugestão de abordagem para o escritor contemporâneo, leveza esta que costuma render críticas ácidas de alguns estudiosos literários: "os novos escritores, afinados com os hábitos alimentícios deste fim de século, publicam livros light, para serem consumidos rapidamente. (...) De modo geral, os livros de ficção se tornaram mais curtos e mais leves; nenhum pretende ser mais o Livro, e os próprios fragmentos se contentam com ser meros pedaços soltos".

É preciso, porém, ler este valor de Calvino em conjunto com os demais, especialmente a rapidez e a exatidão. A rapidez, tida como um valor dos tempos, mais do que uma predileção do autor, de certa forma justifica a leveza, seja essa leveza temática ou formal (através de textos extremamente curtos que não afastem o leitor). A exatidão, por sua vez, vista como uma linguagem mais precisa possível, impede que se confunda a ideia de leveza com a de superficialidade, e sim que se perceba a leveza como um contraponto ao "peso do mundo".

A literatura, segundo Calvino, é uma busca de um outro mundo, um mundo de sonhos, e também a internet pode ser vista como um "mundo paralelo", um "mundo virtual" . A insegurança das pessoas nas grandes cidades decerto colabora com o aumento do tempo de permanência na rede, pois assim as pessoas ficam no conforto e na segurança de seus lares, mas em contato permanente com outras pessoas, ainda que um contato virtual. Isso também explicaria por que as redes sociais e os sites de entretenimento são os mais procurados na internet , reforçando a sugestão de Calvino para que se opte, entre o peso e a leveza, pela leveza.

Tal predominância da leveza no ambiente virtual, que de certa forma limitam a internet enquanto mídia, pode se tornar também fundamental para a permanência de uma mídia como o livro. Vejamos, por exemplo, o caso do site da Biblioteca Nacional, que disponibiliza gratuitamente obras de domínio público para download. Apesar disso, milhares de livros de Machado de Assis e José de Alencar seguem sendo vendidos nas livrarias, muitos para jovens pré-vestibulandos que estão acostumados com a rede, mas preferem ler o texto mais "pesado" em outro ambiente, guardando o tempo no computador para "se divertir".

Curiosamente, a conferência sobre a consistência, que talvez refutasse os chamados hábitos lights que teria a literatura contemporânea, não foi escrita por Calvino, que faleceu antes de concluir a sexta proposta para nosso milênio. Não podemos, entretanto, perdê-la de vista, especialmente para não permitir que as ideias de leveza e rapidez confundam-se com a de superficialidade.

Não esgotamos aqui, evidentemente, todas as abordagens possíveis sobre as questões levantadas por Calvino, tampouco agregamos citações suficientes de obras importantes da tradição literária. Esperamos, porém, ter demonstrado como, ao olhar para as novas tecnologias, para um ambiente absolutamente multimídia e plural como a internet não estaremos, de forma alguma, negando a literatura, mas sim resgatando sua especificidade, especificidade esta que, se for preservada, apesar de tantas possibilidades técnicas e midiáticas, garantiria a sobrevivência da literatura neste e nos próximos milênios, como sempre sobreviveu desde que o homem contou a primeira história numa caverna.

Marcelo Spalding
Porto Alegre, 13/5/2010

 

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