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Segunda-feira, 17/5/2010
Como treinar um ser humano
Daniel Bushatsky


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

Não li ou ouvi, em qualquer meio de comunicação, sobre um fato em especial do belo filme da Pixar Como treinar o seu dragão.

O filme rodeia um tema desde que o dragão Banguela se machuca e, a princípio, não consegue mais voar, até o final do filme, quando o personagem principal, Soluço, vira o herói da aldeia viking.

Alguns leitores podem achar que estou falando do desenvolvimento linear do personagem Soluço, de medroso, desajeitado, ruim com mulheres a salvador da ilha viking, habilidoso e garanhão, mas não estou.

Me refiro a algo muito mais comovente e profundo, que é a deficiência física que o dragão Banguela adquire na começo do filme (perda de parte da cauda) e a do garoto Soluço, no final do filme, que perde parte da perna. Coincidência, não?

Quando e quantos filmes vocês já viram, ainda mais em um desenho hollywoodiano, que o personagem principal é deficiente físico? Nenhum, aposto. E os dois, então! Quando percebi, aplaudi de pé! Uma iniciativa e uma coragem única.

Não obstante eu ser favorável ― e já defendi isto outras vezes ―, a políticas públicas de inclusão dos deficientes físicos, com obras públicas, deduções de impostos e criação/manutenção de centros esportivos e recreativos destinados a eles, nada vence um desenho animado na importante tarefa de inclusão e perda do preconceito.

Com este desenho, crianças especiais poderão ver que até, digo, inclusive, os desenhos animados podem ter algum tipo de deficiência e serem muito felizes. Já as crianças "normais" podem ver que crianças especiais podem brincar da mesma forma que elas e com elas.

Fora isto, a oportunidade de se verem retratadas na telinha também é mágica. Cria-se uma identificação com o personagem que pode acabar servindo de modelo e herói.

Se antes uma criança especial não poderia vestir fantasia alguma para se inspirarem nos seus desenhos animados favoritos, hoje podem se vestir de Banguela ou Soluço.

E mesmo dois deficientes podem brincar, se divertir e se destacar no grupo, conquistando o amor da menina mais bonita, que não o deixou só por ele ter virado deficiente físico. A menina incentivou-o e o acolheu. Enfim, serem felizes.

Caro leitor, desculpem a repetição indiscriminada da palavra feliz, mas há conceito mais importante e perseguido?

Só para confirmar minha posição, indico a leitura do livro O olho mais azul, de Toni Morrison, que conta a história de uma menina negra, pobre e feia, nos Estados Unidos, que sonhava ganhar de presente uma boneca negra, que se parecesse com ela. Ela estava cansada (sem saber) do padrão de beleza Barbie: loira, alta, magra, de olhos azuis.

Por outro lado, para incentivar a leitura de como dedicação, carinho e aceitação são os verbos mais cobiçados pelos deficientes físicos, recomendo a leitura do livro Guerreiros Paraolímpicos ― Vida e Magia, de Patrícia Osandón.

O livro realça a humildade e a trajetória vencedora dos atletas, lembrando de dar voz própria a eles. Rivaldo Martins, bicampeão mundial de Ironman em 2001 e 2003, na categoria Physically Challenged, que teve a perna esquerda amputada após um acidente de ônibus, faz o seguinte depoimento no livro: "o processo de inclusão social tem ajudado bastante. Mas, infelizmente, muitas coisas têm que ocorrer por pressão. Não adianta ficarmos falando palavras lindas se não há acessibilidade e condições para que a pessoa com deficiência possa viver. É preciso que as leis sejam cumpridas de verdade".

É justamente o que o filme faz. Não fala, mostra e inclui, sem ser forçado!

A lição dada pelos criadores desse mágico filme é clara: não basta pseudoincentivos, que ninguém vê. Para aceitarmos os deficientes e eles nos aceitarem precisamos primeiro perder o preconceito; depois, viver em harmonia.

Para considerarmos alguém "normal", precisamos aceitar e incluir. Todos podem fazer sua parte, antes que somente pelo fogo de um dragão sejamos capazes de entender! Mas se formos obrigados a entender, estaríamos realmente entendendo?

Vale informar duas curiosidades. No livro que inspirou o filme, Soluço não é e nunca foi deficiente físico. Ponto para a Pixar. Fora isto, o livro não prega harmonia alguma entre dragões e vikings. Pelo contrário, na batalha final os dragões fogem da aldeia e dos cruéis humanos. Outro ponto para a Pixar.

No filme há um mútuo treinamento, tanto os dragões percebendo que os humanos só eram tão agressivos por preconceito, quanto os humanos percebendo o quão dóceis podem ser os dragões, a ponto de virarem bichinhos de estimação. Os dois lados cedem e aceitam! Enfim, superam-se!

Caso não haja a tomada de consciência necessária para a harmonia e inclusão dos deficientes físicos, somente uma única alternativa restará à Pixar. Fazer um filme intitulado: Como treinar um ser humano.

E parece que já estão fazendo!

Daniel Bushatsky
São Paulo, 17/5/2010

 

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