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Sexta-feira, 28/5/2010
Computadores, iPads e colheres de pau
Ana Elisa Ribeiro


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

"Naquela época, a gente decorava a tabuada e as regras de vígula e aprendia tudo com perfeição. Era muito melhor". É assim que algumas pessoas descrevem o sensacional método de ensino que conhecemos por "decoreba", nos tempos atuais. Note-se o julgamento positivo que se faz da antiga proposta, conforme o relato de uma memória provavelmente misturada a sentimentos em relação ao mundo atual. É impossível lembrar de algo com isenção, ao menos para humanos. A memória é uma espécie de caldeirão de experiências misturadas a um tempero de sentimentos e sensações.

É com algum horror que ouço relatos como o que inicia este texto. Decoreba é a última coisa que alguém quer proliferar na escola da atualidade (ou ao menos em algumas). Há muita coisa para saber, entender, correlacionar e criticar em lugar de apenas decorar. Bem, nada contra saber datas, eventos, poemas ou equações de cor. É bem natural que, de tanto procurar e usar algo, decoremos sua forma. Símbolos, códigos, números, ordens são decoráveis. Mas a compreensão dos eventos (ou episódios ou textos ou problemas) só acontece quando se pode transar operações com a mente, nem sempre só relacionadas à memória.

Uma outra estirpe de pessoas, em geral, jovens, tem a síndrome contrária: tudo o que é novo é mais bacana do que as coisas "velhas". Nem sempre conscientes, creem (porque quase sempre se trata de crença) que um dispositivo B ou C, que se liga à tomada ou que se carrega com baterias, traz vantagens indubitáveis à vida da humanidade. Por exemplo, outro dia um esclarecido palestrante disse que as redações jornalísticas convencionais passavam longe da generosidade e da inteligência coletiva. Achei a afirmação deveras interessante e corajosa, mas matutei mais sobre seus pressupostos. Ao que parece, também se está dizendo que as redações ditas digitais, em que os jornalistas atuam para e sobre plataformas novíssimas e de alta tecnologia, são recheadas de pessoas generosas, que, juntinhas, fazem emergir muito mais inteligência. Bem, não conheço exemplos práticos nem de uma coisa nem de outra, nem uma relação de causa/efeito com tecnologias assim ou assado. Conheço pessoas que se acham mais do que as outras porque têm na mão um carro (em geral uma caminhonete), uma arma ou um iPhone.

O nome disso (ou desse tipo de síndrome) é determinismo tecnológico. Há disso em todos os tempos e em todas as áreas. Padecemos desse negócio atualmente, o que transforma o cenário em algo embaçado atrás de uma espécie de nuvem de fumaça (ou de poeira). As questões são: escrevo melhor porque tenho um computador? Leio melhor porque comprei um iPad? Faço melhor jornalismo porque atuo em uma redação digital ou integrada?

Em geral, não lidamos com certezas e nem com causações. É tudo muito probabilístico e cheio de, no máximo, correlações. Consulte o estatístico mais próximo para ver no que dá. A ideia é que podemos correlacionar coisas, mas apenas mais raramente definir suas causas. Exemplo: o tempo de escolaridade costuma ser uma variável utilizada para medir várias coisas, como habilidade de leitura e mesmo desenvolvimento humano de uma população. Muitos estudos mostram que há, sim, correlações entre a quantidade de anos que alguém ficou na escola e, por exemplo, sua competência para ler (e mesmo para falar uma língua padrão). Nem sempre, no entanto, é possível atribuir a leitura competente de alguém apenas à escola. Há muito mais variáveis envolvidas nisso.

Quem leu o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, sabe que Fabiano era um personagem chucro, ignorante e que mal conseguia se comunicar. Em dado momento da narrativa, ele demonstra ter raiva dos passarinhos que revoam céu afora. Fabiano atribui a causa da seca aos pássaros, inferindo que toda vez que aqueles animais passam, trazem consigo a desgraça. Ou seja, se matássemos os pássaros, estaria resolvido o problema. Bem, há correlação entre seca e a fuga dos pássaros. Também há causação, já que, de fato, os animais debandam antes que a seca chegue. Funcionariam, então, para o homem, como um sinal, e não exatamente como os culpados. O que ocorre é que os bichos fogem da seca. Fabiano percebe correlação, mas atribui a causa errada ao evento.

Em grande parte dos estudos sobre, por exemplo, tecnologias e educação (especialmente leitura e escrita, sem excluir outros), tenta-se estabelecer correlações e causações a fatos como: crianças e adolescentes que escrevem melhor, que aprendem a redigir, que leem mais, que se tornam bons leitores, etc. e máquinas digitais. Lendo atentamente trabalhos e dados, é muito difícil encontrar, de fato, causações. O fato de se encher a escola de computadores tem relação de causa com uma melhoria bastante rápida da qualidade da leitura desses meninos e meninas? Pode haver correlação? Deve poder. Estabelecer a tecnologia como causa das melhoras são outros quinhentos. Assim como estabelecer pioras extremas à educação de alguém por conta da televisão, da Internet, dos jogos ou de outros aparatos.

Aqui não se implica com a tecnologia. De forma alguma se quer dizer que ela não possa, efetivamente, melhorar algo. Certamente, escrever num editor de texto facilita bem as coisas. Só não sei se escrever bem tem relação de causa com a compra do equipamento. Implica-se com o determinismo tecnológico que subjaz às afirmações de muita gente bacana, que pode ter os olhos tapados e prestar o desserviço de tapar os olhos dos outros. Isso sempre existiu. É o que nos pode tranquilizar. Técnicas e tecnologias sempre se passaram por messiânicas ou aterradoras. Grande parte de nossas discussões atuais é apenas reedição. Muita coisa inédita acontece também, mas nossa fome não depende tanto de a colher ser de pau ou de aço inox.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 28/5/2010

 

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