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Terça-feira, 22/6/2010
Orgasmo ao avesso
Débora Carvalho

Espasmos mais fortes do que é possível imaginar. O corpo entregue a sensações antes desconhecidas em partes que nunca foram sentidas. Não há o que fazer. Impossível lutar contra. Gemidos? Os mais intensos. Não dá pra voltar atrás, nem pedir para parar. Só resta abrir as pernas e relaxar, deixar acontecer. Isso implica respirar fundo e se entregar à dor que vai expulsar o feto do ventre e transformá-lo em um bebê, e você, em mãe.

É como perder a virgindade, só que ao contrário. Em vez de puro prazer com uma pitadinha de dor e ansiedade por não saber exatamente o que vai sentir, muita dor e ansiedade com uma pitada de prazer ― pelo mesmo motivo. (Isso para quem gosta de aventura, mistério e superação.)

Minha maior curiosidade era a intensidade da chamada "dor de expulsão" do feto. Agora já sei e vou contar: é como a dor de fechar a porta do carro e esquecer de tirar a mão da porta. Como dar uma martelada no prego e acertar o dedo. Ou, ainda, como as agulhadas de uma anestesia local no dedão de um pé que acabou de perder a unha num acidente (aconteceu comigo no sexto mês de gestação. Até então, as cinco agulhadas da anestesia geraram a maior dor que me lembro ter sentido na vida). No caso do parto, a extensão também é maior ― dentro do abdome todo até "lá embaixo". A duração também é mais longa, e vai e volta, e vem e vai ― por vários minutos... até surgir o rebento.

O momento mais interessante ― chega a ser engraçado ― é quando começam os espasmos espontâneos. Nessa hora, mesmo quem não é muito fã de gemidos "à la filme pornô" acaba gemendo muito. Esses espasmos são semelhantes ao orgasmo mais intenso ― aquele que a gente nunca mais quer sentir de novo, porque exige muita entrega e a gente fica sem controle e pensa que vai morrer, mas ao mesmo tempo quer morrer sentindo aquilo. A diferença é no final. Acaba de repente. E tem que se entregar para a dor. Relaxar mesmo, da mesma maneira que para o prazer. No começo a gente tem que ajudar fazendo força. A enfermeira obstetra diz: "Faz força de cocô!". Eu tentei. Acho que podiam dizer outra coisa, mas a gente pega o jeito mais rápido. É uma frase feia, mas prática. Na verdade, é o mesmo tipo de força de quando o "número dois" está ressecado. É a mesma sensação do momento de passagem da cabeça do feto ― só que em outra saída. No começo a gente tem mesmo que fazer força. Se não fizer, a dor é muito maior e parece que vai rasgar tudo. Fazer força faz a dor e a sensação de que vai rasgar diminuírem, além de fazer a gente se sentir no controle, forte e poderosa.

A grande surpresa é que depois de algum tempo o corpo começa a fazer tudo sozinho. Eu levei um susto enorme. Não fosse a dor, eu teria dado muita risada de mim mesma. Ninguém me avisou que isso aconteceria. Na hora, lembrei do meu obstetra com quem fiz o pré-natal. Ele me ajudou muito na preparação para o parto natural, mas esqueceu desse detalhe. Lembro que a obstetra me pedia para não fazer mais força (porque estava aplicando anestesia para uma episioestemia depois que a Lara tentou por a cabeça pra fora umas 15 vezes, sem sucesso), mas eu não conseguia parar ― era o corpo fazendo tudo sozinho. Nem senti as agulhadas. E, de repente, o choro do rebento invade o ambiente e rouba todas as atenções. Inclusive a das dores que se transformaram em recordação num piscar de olhos.

O pai, coitado. Se tentar ajudar, atrapalha. Lembro que, na sala de pré-parto e durante o exame de cardiotocografia, ele queria fazer massagem na minha barriga, um carinho para ajudar aliviar a minha dor. Em troca, levou uns berros:

― Não me toca!

E quando tentava conversar para distrair:

― Cala a boca! Eu estou concentrada na dor! Fica aí quieto, não faz nada. Só não esquece de filmar.

Eu concentrada na minha aventura dolorida, analisando cada intensidade das contrações pré-expulsão do feto, e ele:

― Você está dormindo?

― Cala a boca!

Daí ele ficou quieto. Eu já tinha avisado pra ele:

― Não espere um parto bonitinho. Parto não é bonito. É um milagre. Mas não é bonito. Eu vou sofrer, posso gritar muito. Não faço ideia do quanto vai doer, mas acho que vai ser algo horroroso e com muito sangue. E você, trate de não entrar em pânico porque vai ter que filmar tudo.

E não é que ele conseguiu?

Engraçado foi quando a bolsa estourou. Eu estava na sala deitada e a enfermeira obstetra verificando a dilatação. Perdi a cena da bolsa que estoura do nada e vasa um monte de água e a gente sai correndo pro hospital. Ele:

― Nossa! Quanto sangue!

E a enfermeira:

― Vixe, pode ficar tranquilo que daqui vai sair de tudo, até bebê.

Eu não aguentei e dei uma gargalhada. Doeu pra caramba. Não dá pra fazer piada diante de uma parturiente, né?

Outra coisa bem esquisita é que nos filmes e novelas a gente vê as mulheres respirando bem rápido durante as contrações. Mas no hospital me ensinaram a respirar com bastante calma, inspirando pelo nariz e expirando pela boca. Inspira, segura e solta, bem devagar e concentrada. Isso ajudou bastante, pois alivia as dores e relaxa. É como comparar um comercial de Casas Bahia com um comercial da Natura ou O Boticário.

E assim como o sexo de vídeo, filme, novela não é como na vida real, o parto também não é. É tudo mais lento, mais intenso, diferente mesmo. Amamentar e cuidar do bebê também. Não é só dar o peito, trocar fraldas e dar banho. É preciso massagear os seios, cuidar do mamilo, e tem até um jeito certo para o bebê mamar sem machucar. Demorei três dias para aprender amamentar ― com as orientações do Banco de Leite. Mas agora está tudo bem tranquilo.

Ah, como tudo foi tão perfeito na gestação e no parto, ela tinha que nascer com o rostinho vermelho e um pouco inchado. Foi a força para nascer... e bebês nascem inchados mesmo. Mas seis horas depois ela já estava desinchada. No dia seguinte, nem parecia a mesma garota. Ela perdeu 300 gramas, mas recuperou o peso do nascimento e cresceu 3 centímetros em apenas 9 dias de vida ― sendo que o normal é com 15.

Assistindo a coleta de sangue na veia da mão (para verificar o grau da icterícia e a evolução do tratamento), as enfermeiras disseram que eu era muito calma, pois muitas mães ficavam desesperadas ao ver furar a veia do filhinho.

― Imagina. Ainda bem que tem como ver se tá tudo bem, e ainda bem que tem vocês para fazer isso, né? Ruim seria não ter tratamento.

Acabei dizendo isso para outras mães cujos filhos ficaram internados mais tempo. A filha da minha colega de quarto descobriu que estava com uma bactéria de infecção urinária da mãe, e precisaria ficar internada mais duas semanas. A mãe quase chorando de angústia e eu disse:

― Nossa! Que bom que os médicos descobriram isso antes dela ter alta! Assim ela vai ser tratada. Já pensou se você vai embora com ela sem saber dessa infecção?

Na hora a mãe parou de chorar e disse:

― É verdade. Você tem razão. Ainda bem mesmo.

Eu nunca fiquei internada nem nada. O que sofri de mais sério na vida foi ter deslocado os ossos do braço direito aos cinco anos de idade (salvando meu irmão mais novo de uma queda num tanque de lavar roupa que estava solto na nova casa alugada), e um escorregão que levei no banheiro e acabei chutando o trilho do Box e perdi a unha do dedão. Já sofri batida de carro que amassou a metade, quase caí de um penhasco na praia... mas nada grave aconteceu. Minha primeira internação foi agora, para parir.

Eu fiquei admirada com a cultura que a gente tem sobre partos em geral. Me lembro que assim que o pessoal do condomínio soube que eu estava grávida, cada mulher vinha me contar uma história. Umas diziam:

― Não dói nada. Parto normal é tranquilo. O meu foi... ― e lá vinham duas horas de relato.

Teve uma que até viveu uma piada. Ela não sabia nada de nada. Mal sabia como engravidara (na época, 40 anos atrás). Então, foi ao banheiro fazer xixi e a bolsa estourou. Ela não sabia do que se tratava e apenas contou do "xixi estranho". Daí, alguém perguntou: ― Por que você não me contou que a bolsa estourou? E ela respondeu: ― Mas eu não levei bolsa pro banheiro.

Também ouvi histórias de quase morte, de cesarianas com recuperação terrível, e relatos de que parto normal é a coisa mais horrível do mundo. Que eu deveria fazer cesariana para não sofrer.

No hospital ouvi dizer ― de quem havia tido quatro partos normais e o último cesariana ― que cesariana é a pior coisa, pois a recuperação dos pontos é terrível.

Sobre leite, uma senhora me disse: você tem que beber bastante leite para ter leite. E depois que ela nascer, tem que tomar canja para ter leite. ― O que é canja? (Eu juro que não sabia. Nunca tomei isso.)

Mas caramba! Essa conversa toda não faz o maior sentido. As especialistas do banco de leite informaram que toda mãe produz leite saudável. Meu obstetra me explicou como me preparar para um parto natural. O importante é saber que a gente vai sofrer, mas precisa estar relaxada. Não dá para tentar aliviar a dor, lutar contra ela ― isso sim faz doer muito mais. E a gente precisa sentir o corpo. Não tem nada que respirar rápido, fazer tudo correndo. Não. É devagar, lento. Bem diferente dos vídeos. Mesmo o montão de vídeo que tem no YouTube. Tem parto bonito, parto horrível... Mas eu acho que optar por uma cesariana sem necessidade biológica pode ter ligação psicológica com algum medo de enfrentar o desconhecido descontrolado.

Meu marido disse:

― Amorzinho, agora você provou que é macho. Estou muito admirado de como você aguentou tudo aquilo sem se esguelar. Eu pensei que você ia morrer, e você ali, calminha, controlada. Parabéns!

E parabéns mesmo. Agora me sinto muito mais poderosa do que antes. Não posso dizer que foi o maior sofrimento que tive na vida. Afinal, foi uma escolha minha engravidar. Mas posso dizer que se consegui passar por esse momento de forma consciente e sem berrar feito louca, se consegui encarar sem pirar (como algumas mulheres me relataram), acho que consigo encarar qualquer coisa.

Agora não vejo a hora de acabar essa fase chamada "puerpério", dieta, resguardo e voltar a namorar o maridão para desavessar esse orgasmo tão intenso que senti. Será que vai ser como foi a primeira vez? Não faço ideia... só sei que o jeito é relaxar e deixar a vida acontecer. E por mais que seja necessário estar no controle durante um bom tempo, treinando e se preparando, chega a hora em que para sentir os intensos espasmos da vida a gente tem que abrir mão do controle. Então, tudo acontece naturalmente ― horrorosa e maravilhosamente.

E o resultado:


Débora Carvalho
São Paulo, 22/6/2010

 

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