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Terça-feira, 20/7/2010
Poesia, no tapa
Jardel Dias Cavalcanti


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

"Fazer vinhos é relativamente simples,/ só os primeiros duzentos anos são difíceis." Estes versos do poema "De pinot a cabernet, aprender", do livro de poesia No Tapa, de Leonardo Araújo, pode ser usado também para se pensar a grande poesia, rara, muitas vezes ausente de um século inteiro de cultura literária. Grandes poetas são como pedras preciosas, coisa rara. Devem ser trabalhados na lentidão de séculos de leitura de outros grandes poetas, na vivência da frequentação de outros tantos artistas também raros em sua grandeza.

Mas não só de grandes poetas vivem os leitores de poesia. Há poetas medianos, bons, com certeza, mais que necessários, que nos fazem pensar na poesia grande e redimensioná-la em relação à pequena ou média poesia. E, por sua vez, nos fazem pensar a pequena poesia e redimensioná-la à luz da grande poesia.

É o que nos fala Leonardo Araújo, no poema acima citado: "Como também se pode afirmar/ que um bom poema, por mais difícil e fluído/ (parto natural), não é obra do acaso./ Tempo nos ombros, muita vida, anos a fio./ Depois, basta talhar, no tapa, lutar sempre".

O próprio livro No Tapa parece partir dessa premissa. Muito trabalho e, depois, no tapa, sai a coisa, viva, respirando, não grandiosa, mas percebe-se ali o provocador movimento da linguagem que não é linguagem comum, mas a língua em movimento, vivente, pronta a repensar tudo, inclusive a própria poesia. Pronta a dar no leitor o tapa que deu em si mesma. Caso contrário, não há poesia nem leitores que mereçam esse nome.

Kafka dizia que a arte foi feita para abrir nossa cabeça como um machado. Aberta, ela deixa de ser aquilo que sempre foi e precisa se organizar, de novo e sempre, para poder repensar-se a si mesma a partir dos pedaços que sobraram.

Repensar a si mesma no próprio cerne de sua criação é o legado da arte moderna. E eis que o poema "Arte", de Leonardo Araújo, se propõe a tal:

Arte
Como o silêncio dos seus olhos, feixe de ausência,
o poema mais difícil é o que insiste em falar,
mas que nunca aflora, fica preso no limbo,
arranhando o que não sei ― porém é bem dentro.

Como o brilho dos seus olhos, facho de luz,
o poema mais vivo é o que dá o tapa,
clareia sem tudo explicar ― o que seria cegar
por excesso de luz ou desperdício de verbo.

Como o mistério dos seus olhos foz de incerteza,
o poema mais intenso é o que dispensa estrofes;
não simula versos nem rimas, mas insinua
sem dizer por decreto ― onde, de fato, acabaria a arte.

Mesmo quando fala de "Amar, amor" (título de um dos poemas), percebe-se ali a linguagem discutindo a si mesma, nessa poética que nos ensina que para ser grande leitor de poesia, como para ser grande amante, precisa-se do "vis-à-vis, é como ser cúmplice da outra parte".

Além de poemas que brigam com a própria linguagem em sua constituição, No Tapa traz também poemas meditativos, quase melancólicos, existenciais. A vida envolvida pelas tramas da linguagem se deixa contaminar por sua total ausência de sentido e deixa como resultado do gosto do nada o desejo de "sumir do mapa". A sensação é a de se estar dentro de um livro de Albert Camus. A fenomenologia do próprio peso material da vida, como a pedra de Sísifo, despejada sob nós sem sentido algum, nos deixando a sensação da náusea que é estar mergulhado no círculo entediante que é existir. Nesse sentido, vale citar o poema "Síncope":

Síncope
Sob esta tarde suspensa ― que ameaça cair ―
caminho só, sem planos; em nome de nada, vou.
Noventa e seis quilos mais pesado que o ar,
sigo impune, vão comigo os meus sonhos e pecados.
Na mão, o livro ainda por ler, óculos no bolso,
algumas ideias na cabeça, três chamadas no celular
(não atendidas por livre e espontânea vontade),
nesta tarde que, de súbito, desabou por aqui
e me deixou com essa vontade de sumir do mapa.

A vida como promessa que não se cumpre efetivamente deixa essa melancólica reflexão: "Se aos quarenta prometemos tanto, aos cinquenta, ainda devemos./ Repara que ainda não tens todos os livros e que há melodias soltas no ar". O que sobra, se se pode aproveitar ou conquistar algo ainda, deve ser no tapa: "O que chamamos de vida, aos cinquenta, é o que fazemos pulsar, no tapa".

Poesia reflexiva, mas sem saídas imediatas, escrita "no tapa", expressão sentencial do título do livro, mas pensada no moinho da existência, nas reviravoltas do ser da linguagem e da sua relação com a vida que brota da experiência, como diz o verso "a semente da fruta conhece bem o escuro".

No Tapa, publicado pela editora Scriptum, tem 54 poemas. Universos variados de reflexão onde "nada está garantido, isento de perigo". Uma linguagem de aparente simplicidade, mas crítica em sua clareza, como diz na orelha do livro o poeta e critico literário Mário Alex Rosa.

Os poemas anunciam proposições e sentenças, mas se engana quem acha que são veredictos definitivos sobre a vida, pois são, isto sim, desconcertos que a linguagem poética funda para nos fazer pensar que a vida deve ser vivida "na praxis, como se ama, no embate". A vida, afinal, é onde "nada está esclarecido ou definido", "nada está confirmado ou filosofado", "nada está sacramentado ou justificado" ― aceitar isso não seria aceitar mesmo o próprio princípio da poesia?

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 20/7/2010

 

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