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Sexta-feira, 9/7/2010
Assim é...
Marta Barcellos


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

"A coluna do Verissimo de hoje está muito estranha. Acho que não é dele." Era uma piada ― o texto estava publicado no jornal. Mas se tivesse sido enviado por e-mail, ou mesmo se fosse um link na Wikipédia, aquilo faria sentido demais até para quem acabou de acordar.

Ri da piada dele, talvez um riso nervoso, dei uma olhada na crônica (estava mesmo ranzinza) e terminei o meu café da manhã. Depois fiquei pensando nas voltas que o mundo dá, e que às vezes o colocam no mesmo lugar. Se o papel era tão sólido e estabilizador, nos proporcionava certezas e delimitava a fronteira entre a ignorância e o cientificamente comprovado, a internet nos dá a possibilidade de acreditar no que quisermos.

Será que o homem pisou mesmo na lua? Será que a Terra é mesmo redonda? Assim como alguns de nossos antepassados sem acesso à sabedoria editada por homens com identidades carimbadas por cartões de ponto, que trabalhavam em prédios com fachadas imponentes e letreiros respeitados, poderemos duvidar de quase tudo no futuro. Acreditar no que quisermos, ou no que convier às nossas convicções prévias. Eu decido se o texto é mesmo do Arnaldo Jabor, e não me importa que ele próprio negue a autoria. Se ele negar em seu Twitter, decidirei desconfiar da sua autenticidade. Se negar em sua coluna de jornal, nem saberei, porque não leio mais em papel, representante da segurança inabalável e ilusória do passado.

De início, esse mundo paralelo e nebuloso da internet me incomodava. Era preciso denunciar, desmascarar a corrente inventada sobre a criança perdida, a calúnia política, os perfis falsos nas redes sociais, isso era o que eu pensava, imbuída da nostalgia dualista do mundo com mocinhos e bandidos do passado. O que não era verdadeiro, era falso. Se não fosse falso, seria verdadeiro. Você se lembra?

Foi quando percebi que muitos dos supostos ingênuos não se importavam tanto assim. Acreditavam quando queriam, no que queriam, e isso lhes dava um filtro interessante em relação ao mundo exterior. Se já tinham preferências, como simpatia por um candidato e ojeriza por outro, podiam encontrar na internet exatamente o mundo que cogitavam. Rapidamente confraternizariam com seus pares, e compartilhariam terríveis denúncias sobre o político que já pressentiam detestável. Se quero odiar um candidato ou exercitar minha generosidade fácil endossando uma corrente para salvar o mundo, por que ir atrás de uma suposta verdade sobre os fatos?

A tal verdade, como todos sabem, era terrivelmente manipulada pelas mídias antigas e todas-poderosas. Mesmo os livros, desde sempre, serviam para propagar ou reforçar os valores de uma elite sempre interessada. Agora, as manipulações são segmentadas, ganham ares de peraltice e parecem menos inofensivas. Se algo não for real, pelo menos é divertido. Se ninguém sair seriamente machucado ― ou se atirar da janela por causa de uma campanha de difamação ―, tem-se a sensação de estar conectado ao mundo real (o antigo "bem informado") e ter opinião própria.

Mas é preciso leveza para renunciar ao conforto das grandes mídias e escolher as próprias verdades no fragmentado mundo virtual. Nada de se levar tão a sério. Ou mesmo nada de levar o mundo tão a sério. É preciso curtir ― gíria do passado ironicamente resgatada pelo Facebook. A tarefa, entretanto, é facilitada pela velocidade que impera em nossas vidas, devidamente assegurada pelas novas tecnologias.

Em segundos, precisamos descartar assuntos e pessoas, eleger interesses, escolher quem editará o conteúdo que acessaremos. E nada será para sempre, porque podemos reconfigurar tudo a qualquer momento. As eventuais dúvidas sobre a autoria de um texto, um perfil, o fundamento de um boato que bombou naquele dia, a foto que pode ter sido ou não alterada, tudo formará um caldo ralo, que passará sem problemas pelo filtro da nossa consciência de poros cada vez mais esgarçados. E nada ficará.

O entorpecimento nos deixou parecidos com o camponês alheio, que acreditava nas lendas e duvidava da ciência (com certa razão, diga-se de passagem). Ao contrário deles, porém, não tememos os deuses, nem a fúria da natureza, apenas estamos voltados demais para nós mesmos, não temos mais essa curiosidade toda em relação ao mundo real. O excesso de informação nos exauriu. Queremos apenas nos divertir.

Nessas alturas de 3 mil ou 4 mil caracteres, devo parecer pessimista ou saudosista, quando o meu sentimento em relação à revolução da internet é de absoluta excitação. Que faço, agora? Reescrevo tudo? Bobagem, a minha ranzinzice é também uma das camadas da minha verdade, e posso parar nela, em vez de tentar arrancá-la, para achar outra e outra, e nunca de fato chegar à essência que mal consigo sentir ― quanto mais transmitir. Melhor parar por aqui.

É quando, então, em meu esforço permanente para entender a contemporaneidade, me ocorre uma ideia. Se este texto é pessimista demais para a escritora que pretendo ser, poderia assiná-lo como se fosse Arnaldo Jabor. Não como Luis Fernando Verissimo, pois teria que inserir alguma pitadas de autoironia para talvez funcionar. Então é assim que funciona, descubro agora. Por isso alguém gasta tanta energia em um perfil falso e quase perfeito no Facebook. No admirável mundo novo, podemos não só acreditar no que quisermos como ser quem quisermos.

E durma-se com isso (e pensar que tudo começou no café da manhã).

Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha.

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 9/7/2010

 

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